icon-plus
Retrato de Matthew Gandy [Foto: Cortesia do autor]
Postado em 31/01/2025 - 11:07
Pode um rio sobreviver às grandes cidades?
Uma conversa com o geógrafo britânico Matthew Gandy sobre águas, infraestrutura urbana, cultura e capitalismo global

Esta entrevista é parte do processo curatorial do projeto Águas Abertas, programa de ações e reflexões artísticas sobre o Parque Bruno Covas, instalado ao longo de 8 quilômetros da margem oeste do Rio Pinheiros, em São Paulo. Após as transformações sofridas entre os anos 1930 e 1950, com a retificação do seu curso d’água e a construção de represas e usinas, o rio passa hoje por outro ciclo de transfiguração, com grandes empreendimentos imobiliários sendo implementados nas franjas de suas águas. 

Com o intuito de ampliar as nossas perspectivas sobre as águas urbanas hoje, convidamos o geógrado britânico Matthew Gandy, estudioso das metamorfoses das grandes cidades nos últimos séculos e da complexa relação entre natureza e interesses políticos. Gandy é autor de diversos livros, em que analisa casos em várias partes do mundo, como no mais recente Natura Urbana: Ecological Constellations in Urban Space (MIT Press, 2022). Atualmente, ele se debruça sobre duas novas obras, uma que trata de “refúgios urbanos” e outra a respeito de “urbanização zoonótica”.

JPQ: Para começar, seria interessante saber como você se envolveu com o tema da água urbana, que levou ao livro The Fabric of Space – Water, Modernity and the Urban Imagination (2014). Ao falar de envolvimento, refiro-me ao seu percurso acadêmico, mas também se houve alguma experiência pessoal que o levou a se interessar pela água.

Matthew Gandy: Quando estava trabalhando no meu doutorado, no início dos anos 1990, que comparava a formulação de políticas ambientais em Londres e Hamburgo, deparei-me com uma tese de doutorado dos anos 1970 sobre a história da água em Londres. Fiquei fascinado pela riqueza da água como ponto de entrada analítico para compreender as dinâmicas sociais e políticas do espaço urbano. Outras entradas para meu estudo da água incluem uma exposição de fotografias de Nadar sobre o mundo subterrâneo da Paris de Haussmann, que me inspirou a pensar sobre as transformações da cultura visual da infraestrutura na modernidade. No início dos anos 2000, como pesquisador visitante na UCLA [University of California, em Los Angeles], também tive a oportunidade de explorar trechos do Los Angeles River, que mais tarde tornou-se outro capítulo do meu livro. Da mesma forma, visitas à notável Barreira do Tâmisa, em Londres, e ao parque adjacente, bem como aos lagos de banho de Berlim, foram todas fontes significativas de inspiração para o meu projeto de livro.

Seu livro nos dá uma visão clara dos efeitos que a ideologia da modernidade teve nos processos de urbanização em várias metrópoles ao redor do mundo durante os séculos 19 e 20, produzindo um rígido controle do espaço físico e da natureza. Parâmetros como ordem e disciplina, ligados às premissas políticas higienistas do século 20, favoreceram a implementação dos projetos racionalistas das cidades modernas. Consequentemente, isso também se refletiu na relação com as águas urbanas. Aqui na cidade de São Paulo, a retificação do Rio Pinheiros na década de 1930 pode ser vista como um grande marco nessa nova visão da cidade, em que a infraestrutura se sobrepõe às seculares culturas ribeirinhas. Que concepções de cidade podemos extrair dos casos de Paris, Berlim, Lagos, Mumbai, Los Angeles e Londres que você analisa em seu livro? É claro que cada caso tem suas particularidades, mas é possível reconhecer um mesmo imaginário que percorre a forma como as água urbanas foram tratadas no século 20?

Acho que uma ênfase subjacente no controle da natureza – e no que poderíamos chamar de engenharia da saúde pública – sustentou a transformação da maioria dessas cidades. Os geógrafos Stephen Graham e Simon Marvin introduzem o termo “ideal moderno de infraestrutura”, que pode ser comparado ao interesse do historiador da arquitetura Anthony Vidler na “ideologia técnica da metrópole”, para englobar um paradigma específico de engenharia que emanou de uma série de cidades do século 19, mas que se tornou muito mais fragmentado em relação aos padrões de urbanização no Sul Global. Gosto de pensar na presença de múltiplas modernidades, em vez de um padrão singular ou teleológico de desenvolvimento urbano: a história urbana pode ser mais bem concebida como um palimpsesto de diferentes formações infraestruturais.

Com quase um quarto do século 21 tendo se passado, que discursos políticos você identifica como tendo o maior impacto na configuração do espaço urbano hoje? Na sua opinião, há alguma mudança de perspectiva em relação à modernidade ou continuamos no mesmo rumo?

Precisamos ser cautelosos com a interpretação do presente, ou pelo menos com uma certa tendência de exagerar o momento contemporâneo em relação a um conjunto mais desbotado de conexões com transições passadas. Há elementos desse “presentismo” em relação ao Antropoceno urbano, por exemplo, e ao grau de ênfase dado aos anos recentes em comparação a eventos históricos significativos do passado. No entanto, se tentarmos identificar certas tendências culturais ou políticas em relação ao urbanismo contemporâneo, talvez cinco vertentes principais possam ser delineadas: padrões intensificados de desigualdade socioeconômica, impulsionados em parte pelo tecnofeudalismo e pelo capitalismo em nuvem; um aumento na ênfase em formas arquitetônicas especulativas; um foco crescente no urbanismo ecológico, incluindo a revalorização de paisagens ribeirinhas, zonas desindustrializadas ou sistemas de infraestrutura desativados; uma fascinação estética crescente com a agência independente da natureza; e um foco, em certa medida, contraposto, na “cidadania” urbana e nos direitos de outros seres não humanos ao espaço urbano.

Rio Los Angeles, California (2003) [Foto: Cortesia do autor]

O percurso histórico que você traça revela como, na Europa, os rios foram vistos como uma interseção entre a engenharia urbana e uma elaboração da ideia de natureza urbana, apontando, inclusive, para novas possibilidades de experiência do corpo (como em jogos e outras formas de lazer ligadas à noção de liberdade). A história da arte fornece um vasto repertório de cenas sociais de fruição nas margens de rios e em parques. No Brasil, no entanto, toda a capacidade dos rios urbanos de abrigar a experiência física de lazer tem sido negligenciada. Como você vê a possibilidade de convergência entre as necessidades infraestruturais de uma megalópole e um usufruto público não instrumentalizado dos rios, ligado a ideias de prazer, descanso e relaxamento, como vemos hoje em algumas cidades europeias?

Rios sempre tiveram uma dimensão significativa para as cidades: como meios de transporte, como fontes de água potável, como destinos para esgoto ou, em alguns casos, como fonte de energia para moinhos, usinas e outros tipos de instalações industriais. A relação entre formas de uso direto e indireto, entre o metabólico e o estético, tem ficado em estado contínuo de mudança. Quando pensamos na evolução das relações entre o corpo humano e a água no espaço urbano, precisamos ampliar a nossa lente analítica para englobar não apenas as possibilidades de lazer nas margens dos rios, mas também o uso de lagos e outros cursos d’água para natação e outras atividades. A transição de padrões de uso industrial para pós-industrial dos rios marca uma potencial mudança de cursos d’água poluídos e negligenciados para novos tipos de interações culturais e arquitetônicas. Um ponto-chave de tensão, no entanto, está entre formas de planejamento urbano dedicadas a ampliar o acesso público à água, como as intervenções de Martin Wagner, na Berlim da era de Weimar, e a proliferação mais recente de formas de “gentrificação verde” que são orientadas para formas mais exclusivas de capitalismo ribeirinho.

Ao longo do livro, também podemos ver como diferentes campos do conhecimento colaboraram nas transformações urbanas em cidades como Paris e Berlim. Experimentos fotográficos, por exemplo, mudaram a percepção pública sobre a rede de saneamento de Paris ao revelar imagens do subterrâneo que cativaram grande parte da sociedade. Você trabalha principalmente no campo da geografia, que me parece um campo muito generoso, atento e aberto a diferentes aspectos das cidades, incluindo seu aspecto cultural. Como você vê essa relação interdisciplinar na organização das cidades? E, em particular, como você vê o papel das artes e da cultura na reflexão e implementação de transformações urbanas?

De volta às fotografias experimentais de Nadar no subterrâneo de Paris na década de 1860, é importante considerar como a evolução das formas da cultura urbana foi influenciada por mudanças tecnológicas nos modos de representação, uma tendência que podemos rastrear até o momento contemporâneo e as rápidas transformações das mídias digitais. A relação entre cidades e cinema, por exemplo, foi amplamente documentada, abrangendo desde o papel específico do espaço urbano no modernismo do século 20 até o surgimento de ambientes geográficos dominados pela produção cinematográfica em Los Angeles, Mumbai, Lagos e outras cidades. Como disciplina, a geografia está muito bem posicionada para explorar dimensões materiais da cultura visual que abrangem tanto os tropos de representação, como as paisagens cinemáticas, quanto aspectos mais específicos da indústria cinematográfica, como o papel das isenções fiscais na Nova York dos anos 1970 e em outras cidades que promoveram o crescimento de formas de produção cinematográfica baseadas em locações. De maneira mais ampla, eu sugeriria que cultura urbana é indissociável de qualquer reflexão mais ampla sobre mudanças de padrões de vida urbana, uma dinâmica que abrange múltiplas formas de arte, incluindo teatro, literatura e uma variedade de intervenções experimentais.

Barreira do Tâmisa, Londres (2014) [Foto: Cortesia do autor]
Estamos passando por um período de evidente colapso dos modelos de sociedade, que se manifestam cada vez mais em desastres naturais – talvez nada naturais. Este ano, o Brasil viveu uma das maiores enchentes de sua história. Chuvas extremas causaram o transbordamento de rios e 94% do estado do Rio Grande do Sul foi afetado pelas inundações, impactando mais de 600 mil pessoas e causando a morte de 179. Enquanto preparo esta entrevista, a cidade de Valência, na Espanha, também passa por um dos maiores desastres de sua história, com a quantidade de chuva de um ano caindo em um dia, deixando mais de 200 mortos até o momento. Como você enxerga o futuro das cidades e sua relação com a água? Podemos atestar o fracasso dos modelos consolidados no século 20?

A água é, claramente, central para as possibilidades futuras da vida urbana, abrangendo desde a segurança do abastecimento até a capacidade de sistemas infraestruturais de lidar com o seu excesso, como inundações, elevação do nível do mar e outras ameaças. Imaginários ecológicos urbanos futuros abrangem tanto cenários utópicos quanto distópicos, variando de cidades inundadas e abandonadas a novos tipos de design de paisagem, como planos complexos de contenção de enxurradas ou “cidades-esponja”, desenvolvidos para mitigar diferentes fontes de risco de inundação. Sob o “Antropoceno adaptativo”, são feitas certas suposições sobre a possibilidade de planejar cidades futuras e usar formas de engenhosidade técnica ou econômica para enfrentar riscos ambientais. O perigo de grande parte do discurso do Antropoceno, no entanto, é que as causas estruturais da crise ambiental são efetivamente ocultadas por uma espécie de solução tecno-mercadológica que simplesmente não funcionará. Em última análise, eu argumentaria que o futuro da relação entre cidades e águas continuará sendo uma questão de contestação política e histórica, como sempre foi.

A especulação imobiliária é um dos agentes mais ativos na alteração das paisagens de rios e lagoas urbanas no Brasil. Em São Paulo, esse mercado está impactando cada vez mais toda a margem do Rio Pinheiros com empreendimentos corporativos e anúncios de condomínios de luxo em construção. Aqui voltamos ao problema de termos a especulação financeira como o principal motor das mudanças urbanas. Isso tem sufocado comunidades que ocupam essas áreas há muito tempo e que preservam o pouco que resta da cultura ribeirinha nos grandes centros urbanos. Como você vê essa relação entre capital e território?

Acho que os empreendimentos que você descreve podem ser observados em muitas cidades ao redor do mundo, à medida que os locais à beira d’água são valorizados dentro de uma dinâmica mais ampla de urbanismo especulativo. O Rio Pinheiros representa um exemplo claro de um rio industrial, que foi parte integrante da modernidade tecnocrática, sendo remodelado como um rio pós-industrial, agora um anexo às novas tendências de urbanização capitalista. A fase anterior de uso do rio talvez seja exemplificada por sua conexão com a usina hidrelétrica Henry Borden, em operação desde o fim da década de 1920. Novos aspectos do design paisagístico, como o Parque Global, indicam uma visão ecológica que atende às necessidades das elites urbanas, com uma mudança de ênfase da produção para o consumo. Nesse sentido, as mudanças nas condições do rio refletem mudanças socioeconômicas mais amplas na região metropolitana de São Paulo, incluindo a extensa realocação ou desativação da produção industrial.

Finalmente, gostaria de propor um experimento de livre interpretação e associação, com base nas imagens que compartilhei com você do contexto em que estamos atuando no Rio Pinheiros, para que possa reagir como considerar pertinente ou instigante.

Obrigado por compartilhar essas imagens e vídeos fascinantes. Minha primeira reação é uma sensação predominante de “ausência de lugar”, já que esses locais e espaços me são tão familiares quanto desconhecidos: os fragmentos de infraestrutura indicam claramente um certo tipo de modernidade tecnocrática que foi amplamente replicado em muitas cidades. Da mesma forma, as superfícies brilhantes dos novos empreendimentos de arranha-céus não pareceriam fora de lugar em várias cidades globais, e me lembram Londres, Mumbai e outras cidades que conheço. A água de um verde intenso, talvez causada por despejos de esgoto bruto, certamente me lembra as partes altamente poluídas do Rio Mithi, que passa por Mumbai. As ciclovias estranhamente desertas e as cercas de segurança ao longo das margens recém-paisagísticas do rio também evocam a “gentrificação verde” ao longo do Rio Los Angeles. Acima de tudo, parece-me que uma variante da natureza metropolitana associada ao urbanismo industrial do século 20 está sendo gradualmente substituída por outro tipo de rio no século 21, enraizado em uma articulação inquietante entre urbanismo ecológico e capital global.

Rio Los Angeles, California (2003) [Foto: Cortesia do autor]