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Postado em 30/01/2023 - 5:28
Poder: modos de usar
Indicado ao Oscar 2023, TÁR discute questões atuais de poder e de abuso, quebrando a relação oprimido x opressor do cinema

Assistir a TÁR, novo longa-metragem do produtor, roteirista e diretor Todd Field, é como acordar de um sonho lúcido. É perceber que se está sonhando enquanto seus olhos ainda estão fechados, o que torna possível que o sonhador tenha experiências sensoriais mais vívidas do que costuma ter em sonhos comuns, ou seja, é não saber, ao certo, o que é fato ou ficção.

Ao longo de intensas 2 horas e 40 minutos, TÁR sustenta uma narrativa – que mira e acerta no documental – sobre a personagem ficcional Lydia Tár, interpretada pela atriz australiana Cate Blanchett. O filme acompanha sua trajetória conturbada como regente da Orquestra Filarmônica de Berlim e as ansiedades de concretizar com maestria seu próximo e mais importante desafio: a gravação ao vivo da Sinfonia nº 5 de Gustav Mahler.

No ramo da música, a compositora está em um pedestal: sua carreira é invejável, ganhou status mundial ao se tornar a primeira diretora musical mulher da Filarmônica de Berlim. Como uma pioneira, a virtuosa e apaixonada musicista lidera o caminho na indústria da música clássica, que é, historicamente, dominada por homens brancos, e irá derrubar, literalmente, tudo e todos que ousarem atravessar seu caminho para alcançar a fama e o poder.

MULHERES TAMBÉM PODEM SER MACHISTAS
Como regente, Lydia Tár não apenas orquestra, mas também manipula. Basta acompanhar os primeiros cinco minutos do longa para perceber que ela não é flor que se cheire. O filme aborda diversos assuntos polêmicos e atuais, como machismo, sexismo, abuso sexual e de poder, que, no decorrer da história, vão se intensificando como uma bomba-relógio.

Nesse sentido, a construção minuciosa da personagem, uma mulher europeia, branca e lésbica, cumpre um papel fundamental na história. Logo no início, durante uma entrevista a um canal de televisão, Tár declara sua opinião não tão popular sobre as questões de gênero, afirmando que nunca sofreu abuso ou preconceito no ramo musical, e que alcançou a fama por seu mérito. Ainda, o entrevistador a questiona sobre chamá-la de “maestro”, referindo-se ao pronome masculino da palavra. Em resposta, diz não responder ao termo “maestrina”, fazendo troça do fato de as astronautas não serem chamadas de “astronetes”.

Ao longo do filme, o espectador se encontra em uma relação de estranhamento com a personagem, que parece defender ideais retrógrados e contraditórios com seu estilo de vida: Tár é uma mulher machista.

Uma cena é crucial para os destinos que o filme toma: a personagem é convidada a lecionar uma aula na Juilliard School, escola de Ensino Superior de Música, Dança e Dramaturgia, em Nova York, nos Estados Unidos. Tudo parece bem até que um jovem negro e panssexual diz que se recusa a ouvir as composições de Bach e de outros compositores clássicos. Ignorando todos os motivos do aluno, a regente se nega a julgar anacronicamente artistas clássicos da música, protagonizando cenas duvidosas em resposta à provocação do aluno que, mais à frente, são publicadas nas redes sociais.

O momento coloca em questão uma pauta atual nas artes: é possível admirar a produção de uma pessoa detestável? E, mais do que isso: é preciso separar? Essas são algumas das questões que TÁR nos coloca de forma intensa e com uma performance memorável na carreira de Cate Blanchett.

PRIVILÉGIO BRANCO
Não satisfeito, o roteiro de Field subverte totalmente a lógica oprimido x opressor reproduzida no cinema. Em TÁR, a grande polêmica de assédio moral é protagonizada por uma mulher, deslocada do clássico lugar de vítima. Aqui, podemos citar Paulo Freire, que diz “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”.

A personagem não economiza seu lugar de poder para seguir uma vida desregrada. Em troca de sexo com jovens musicistas, Tár sede cadeiras em sua orquestra, cometendo corrupção, traição e abuso de poder. Com foco na sua relação com uma ex-colega de orquestra, o filme examina a natureza mutável do poder, seu impacto e durabilidade em nosso mundo moderno, fazendo questionar, ainda, os privilégios brancos em julgamentos públicos.