Desafio imaginativo: considere um terreno subterrâneo comum a todas as obras dessa curadoria, composto por corpos fúngicos que se entrelaçam em redes, conectando todas as raizes a todos os solos e seus minerais. Seres e obras compartilham do mesmo solo fértil. Ao imaginar esses emaranhados interespécies, que antes eram assunto de fábulas, pense em debates entre biólogos, neurologistas, filósofos e cientistas da computação. Essas discussões interdisciplinares mostram como a preservação da vida depende da interação entre espécies. Em concordância, a escrita deste texto assume formas mutantes, acompanhando a diversidade dos temas que se sucedem.
Fomos árvore e fomos mulher. Sabemos que não existe separação entre os seres sencientes do planeta, que não há prerrogativa de um sobre o outro, assim como não existe racionalidade descorporificada. Não somos contra a razão, que também é parte constitutiva do que somos, apenas sabemos da razão de todas as coisas, a inteligência das aves e a inteligência das plantas, para colocar em termos que todos possam compreender. Não conferimos qualquer valor elevado ao pensamento porque o sono da razão produziu todos os seus monstros. Por isso a mãe de todas as lutas é a mesma, para falar com Daniela Rosendo (Sapas e outras bixas, seLecT no #52), para quem “os ecofeminismos dizem respeito às práticas contra a opressão, seja esta direcionada a humanos, à natureza ou, por vezes, a animais.”.
A reciprocidade, entre os Yanomâmi, garante que aquele que se alimenta da própria caça torna-se um mau caçador, porque não estabelece relações de troca. Davi Kopenawa tornou-se um caçador ruim no período em que trabalhou com os brancos na floresta, porque o fizeram alimentar-se da própria caça. A ecosofia da troca perpassa as relações entre nós, plantas, minerais, animais, inclusive o homem-peixe, primeiro habitante humano desta galáxia. Na maloca do universo, a avó do mundo enviou sua canoa-cobra, uma jiboia imensa, para levar a gente-peixe para o lago de leite, de onde surgiram todos os seres que vivem na Terra, contam os povos do Rio Negro. A canoa-cobra não está encerrada num mito indígena de surgimento do mundo, mas dança na dupla hélice de proteínas do DNA, duas fitas-serpentes luminescentes entrelaçadas, com um comprimento total, somado todo o DNA contido no corpo humano, de 25 viagens de ida e volta entre Saturno e o Sol, nas palavras de Ailton Krenak.

Nós, jiboias, somos formadas pelas mesmas duplas hélices de proteínas que todos os seres viventes, as serpentes dançantes dentro do nosso DNA são compostos orgânicos que formam textos de quatro letras. Essas mesmas letras escrevem o texto que configura cada forma de vida, ou seja, ainda ouvindo Krenak, “todo ser tem DNA formado pelas mesmas letras, só que com textos diferentes”. São deidades serpentinas reconhecidas nos quatro cantos do mundo a mulher-jiboia dos Huni Kuin; a serpente emplumada dos Nahuas; Ix Chel, deusa maia com uma serpente na cabeça; Baholinkonga, serpente emplumada dos Hopi; a serpente cósmica dos Shipibo; a anaconda Shamamama dos Quéchua; a serpente arco-íris dos povos aborígenes da Austrália; Ouroborus, a cobra que come o próprio rabo em eterno ciclo de nascimento, morte e renascimento; e mesmo a serpente da narrativa católica que coloca em marcha na Terra a humanidade. Nós, cobras grandes, emergimos dos sonhos de Jaider Esbell, sempre em dupla, para habitar um lago em São Paulo e uma ponte em Belo Horizonte, iluminados, desafiando a incompreensão sobre a conexão entre todas as coisas.
Nós, antúrios, vestimos Dyó Potyguara com uma máscara de folhas, costuradas manualmente para configurar um herbário vivo. O herbário descolonial ganha corpo quando ela vai mata adentro conectar as tranças de seus cabelos aos galhos da floresta, evocando uma prática ancestral dos povos de Abya Yala. Dyó guarda em seus cadernos algumas notas de quando foi árvore, “algo sobre sonhos em fotossíntese, pois ampliam a sensação de continuidade ao receber essa luz.” Vivemos num continuum de transformações energéticas e distribuição de matéria orgânica para alimentar todos os seres vivos, por isso Dyó se lembra de quando foi árvore.

Nós, bananeiras e taiobas, emprestamos algumas folhas para Lia Chaia quando ela decidiu esclarecer a diferença entre o que somos e o que os homens brancos ocidentais gostariam que fôssemos: cortou um retângulo nas folhas emprestadas e as devolveu para a areia à beira do mar. Fez fotografias dessa aparente aberração da natureza, para assombrar os visitantes de exposições em São Paulo: “Isso existe?!” Nós sabemos que existe matemática em cada filamento de nossas entranhas, mas não nos teria ocorrido fabricar folhas retangulares para deixar isso mais evidente. A paxiúba, nossa irmã do Norte, é uma árvore que anda. Todas as árvores andam, bem entendido, porque a inteligência distribuída entre as raízes envia a informação sobre um terreno empobrecido de nutrientes para que as raízes da outra ponta busquem um ambiente mais nutritivo para garantir a sobrevivência da árvore toda. Morrem as raízes de um lado, nascem novas do outro, assegurando esse caminhar pela vida. É que o tempo do caminhar é lento, invisível a olho nu. A paxiúba vai mais depressa porque vive no mangue.
INTELIGÊNCIA SISTÊMICA
Nós, formigas. As colônias em que nos organizamos são caracterizadas por uma economia da emergência. Os cientistas costumam dizer que temos um dos mais impressionantes comportamentos descentralizados da natureza, porque nossa inteligência, nossa personalidade e nossa aprendizagem emergem de baixo para cima, bottom-up. Somos metódicas na organização comunitária, desde a coleta e armazenamento de alimento, as nossas elaboradas construções, até a definição estratégica sobre o local onde depositar o nosso lixo (conchas e cascas de sementes, em geral) e onde pousar os nossos mortos. Sim, formigas também constroem cemitérios, em pontos diametralmente opostos aos depósitos de lixo, afinal uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, e nós sabemos a diferença.

O entomologista Edward O. Wilson comprovou, em 1956, que as formigas se comunicam entre si pelo reconhecimento de padrões de trilhas de feromônios deixadas pelas outras formigas. Esse sistema auto organizado de reconhecimento de padrões serve de base para estudos de neurobiologia, ciência da computação, e até de planejamento urbano. Não é fabuloso que a inteligência artificial tenha se inspirado não no cérebro humano, mas na inteligência distribuída das formigas? Pierre Huyghe gosta de trabalhar com colônias de insetos. Nós, formigas, habitamos a sua instalação Umwelt (2011), compartilhando a nossa casa com colegas aranhas. O ambiente criado pelo artista francês permitia que 10 mil integrantes da nossa família polyrhachis dives coabitassem o espaço de uma galeria de arte com um pequeno grupo de aranhas domésticas. A entrada do formigueiro ficava na altura média dos olhos de um ser humano, numa concessão substitutiva em relação a uma obra de arte convencionalmente pendurada na parede. O convite aos visitantes dessa mostra era observar os trajetos que fazíamos pelas paredes, teto e piso. Uma visita rápida ao local, como costumam ser as idas e vindas das pessoas em meio a seus tours quantitativos por galerias e museus, não tinha muita eficácia, porque apenas no decorrer do tempo distendido dos artrópodes surgem os padrões comportamentais que nos diferenciam: nós, formigas, formamos trilhas ou nos dispersamos em grupos no Umwelt, enquanto as aranhas permaneciam sozinhas, nos cantos da sala ou caminhando pela galeria.

Nós, abelhas, também frequentamos as invenções de Huyghe. Nossa aparição mais famosa aconteceu na documenta de Kassel, em 2012. Sobre uma réplica em concreto da escultura de bronze Liegender Frauenakt, do suíço Max Reinhold Weber (1897-1982), transplantaram parte de nossa colmeia, alguns favos para nos incentivar a sentar morada na cabeça da figura reclinada. Untitled (Liegender Frauenakt), de Pierre Huyghe, foi descrita como uma colaboração escultural entre humanos e insetos que explora a relação simbiótica da humanidade com as abelhas, juntando a linguagem da escultura moderna a um sistema natural autogerador – uma colmeia viva. Untitled também seria uma referência à noção de “mentalidade de colmeia”, um processo de pensamento coletivo baseado na cooperação. Para nós, era uma colmeia como outra qualquer, e cobrir a cabeça e o rosto da escultura moderna não nos pareceu particularmente um posicionamento crítico acerca da tradição dessas formas inertes, ainda que possamos perceber o contraste entre a vitalidade de nossas atividades e a apatia daquele mausoléu.
Desconfiamos que o caranguejo-eremita, nosso colega interespecífico, que Huyghe ambientou em um tanque de vidro que continha, além de uma reprodução em microescala de um ecossistema marinho vivo, uma réplica em resina da Musa Adormecida (1910) de Brancusi, tenha experimentado semelhante indiferença em relação ao abrigo que elegeu como morada. Os visitantes da retrospectiva do artista francês no Centro Georges Pompidou (2013–2014) detinham-se maravilhados diante da instalação Recollection – Zoodram 4 – After Sleeping Muse by Constantin Brancusi (2011), observando como o caranguejo-eremita passeava pelo aquário carregando a musa adormecida nas costas.
Quando Untitled (Liegender Frauenakt) foi adquirida, em 2016, pela Art Gallery of Ontario, museu localizado na cidade de Toronto, os conservadores de arte enfrentaram novos desafios profissionais. Como as abelhas e os produtos apícolas são cuidadosamente regulamentados pela província de Ontário, a escultura teve de ser inteiramente realizada lá, seguindo os protocolos do Ontario Bee’s Act, que regem a saúde e o bem-estar dos insetos. O diretor do Four Seasons Center for the Performing Arts, uma instituição que já possuía um projeto de apicultura urbana em seu telhado, ofereceu hospedagem para Untitled lá; o que foi providencial, pois também contava com um apicultor experiente. Os comentaristas especializados costumam descrever seu método de trabalho com arte como “compostagem”, em vez de usar termos como “prática” ou “processo”, que Huyghe rechaça.

NAVEGAÇÃO SOCIAL
Nós, canários e manons, vivemos uma experiência parecida à das formigas polyrhachis dives na galeria em Berlim. Nosso viveiro temporário foi criado pela artista Laura Lima também em uma galeria de arte, no Rio de Janeiro. Nos três meses em que moramos n’A Gentil Carioca havia ninho, poleiros, comida, água e pinturas de paisagem feitas sob medida para nós: adaptadas em escala e posicionamento para nossa apreciação, se quiséssemos. Quando os animais humanos visitavam a nossa hospedaria, precisavam ficar nas pontas dos pés, esticar o pescoço, se agachar ou se contorcer a cada tentativa de contemplar as minúsculas representações realistas da natureza, dispostas pela galeria de arte. Talvez achassem que a exposição se resumia a isso, às pinturas, e que as intrincadas construções de madeira suspensas ou pregadas na parede fossem alguma espécie de proposição escultórica mal acabada. Observávamos esses bípedes fantasiados que desviavam das coisas e, eventualmente, nos devolviam o olhar, não buscando alguma interação ou comunicação, mas receosos de cair “cocô de passarinho” em suas bizarras fantasias ou nos estranhos penachos de suas cabeças. O final do percurso da exposição de Laura Lima, Fuga (2008), era uma estrutura de tubos envoltos em redes, instalada do lado de fora da galeria, à qual tínhamos acesso pelas janelas frontais. O ziguezague de longos tubos desembocava em um emaranhado de tubos menores, esses de madeira, como o de nossos ninhos, terminando em um poleiro minimalista, que dava para a rua. De volta para os céus do Rio de Janeiro, aquela era a nossa possibilidade de “fuga”. Os humanos visitantes que descobriam a rota de fuga lá no final da exposição faziam o caminho de volta nos julgando, com uma curiosidade renovada. “Aves burras”, talvez pensassem, “a saída é logo ali, por que vocês ficam aqui presos?”, e iam embora com aquele ar de superioridade. Obviamente, sabíamos da fresta aberta após a janela, já tínhamos mapeado o lugar todo no primeiro dia. As andorinhas-do-mar-árticas, nossas parentes do Hemisfério Norte, viajam 96 mil quilômetros em suas rotas migratórias, e o caminho da ida é diferente do caminho da volta. Fazem isso todos os anos, no inverno. Como é que nós poderíamos não saber da existência de uma saída em um viveiro de dois cômodos humanos? Muitas de nossas vocalizações regulares, naqueles meses de 2008, versavam sobre essa ignorância risível. “Humanos burros”, comentávamos entre nós, “quando saem porta afora, julgam mesmo ser livres” (risos).

Dos milhares de espécies de aves que existem pelo mundo, muitas de nós são altamente sociáveis, não só vivendo em bandos, nos empoleirando em enormes congregações, compartilhando alimentos irmanamente em colônias superlotadas, brincando, banhando-nos sempre em grupo, mas, inclusive, monitorando e cultivando as interações transespecíficas. Estudos científicos conduzidos na Universidade de Oxford sobre nós, chapins; na Universidade de Viena sobre nós, cacatuas; na Universidade de Washington sobre nós, corvos, sugerem que temos habilidades de traquejo social de alta complexidade. A reciprocidade no ato de dar presentes é outro comportamento social incomum em não humanos, mas frequente entre certas aves, incluindo corvos, informa Jennifer Ackerman, para narrar em seguida a experiência de uma amiga sua que costuma encontrar mimos, como uma bola de gude, uma tampa de garrafa e frutas vermelhas, deixados à sua porta pelos corvos que ela alimenta regularmente. Laura Lima deve ter essas coisas em mente quando constrói para nós Ninhos Comunais (2021-2022), hábitats multiespecíficos feitos a partir de gravetos e chapéus de palha desconstruídos, repletos de varandas de espera e descanso, ninhos e poleiros com variações ornamentais que nos enchem os olhos e nos aquecem o coração. A crítica especializada em arte afirma que essas esculturas se insurgem contra o ideal nuclear de família ao encorajar comunidades utópicas de pássaros a participar de múltiplas construções familiares, o que combina com o nosso estilo de vida comunal.
DIA DA CAÇA
Debaixo de troncos úmidos de húmus, nós, cogumelos matsutake, emergimos em paisagens devastadas (inclusive pela bomba atômica). Podemos tolerar distúrbios ambientais produzidos por humanos, como os ratos, as baratas e outras pragas. Temos a inteligência dos gambás, conhecidos como tlacuaches no México, que se fingem de mortos quando atacados, como bem fabulou Naomi Rincón Gallardo no vídeo Resiliencia Tlacuache (2019), exibido na 34a Bienal de São Paulo, em 2021. Ou das onças brasileiras, que em tempo de precariedade se adaptam aos territórios degradados pela presença humana e já não mudam seu lugar de viver “por o de comer não chegar”, evocando, aqui, Guimarães Rosa, cuja sensibilidade deu voz a diversos de nossos parentes vegetais, animais e minerais que vivem nas veredas do sertão brasileiro.

Nós, onças. Iauaretê. Yawar. Jaguar. Hé… Aar-rrâ… Aaâh… Cê me arrhoôu… Remuaci… Rêiucàanacê… Araaã… Uhm… Ui… Ui… Uh… uh… êeêê… êê… ê… Nós, as Yawar, encantamos na Ibirapema, mulher indígena guerreira que vem da Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguaçu para resgatar a Moema sequestrada pelo poema épico setecentista e as tintas do romantismo indianista academicista. Ibirapema é o nome que Olinda Tupinambá deu à personagem de seu filme homônimo, mulher indígena em pele de onça, que atravessa tempos e salta entre realidades, para acordar a irmã de Catarina Paraguaçu (Moema) do afogamento e do genocídio pelo macho colonizador.
Nós, as suçuaranas, que na floresta assumimos a pele de outras caças – quase sempre dos veados –, a fim de enganar o caçador e capturá-lo, assistimos, desde os nossos esconderijos, a mulher indígena com corpo pintado com jenipapo sair da casca da árvore da floresta domesticada. Ela quer se libertar de seu cativeiro atemporal, o antigo aldeamento Tupi que um dia existiu naquele parque, o Ibirapuera. Nós fomos avisadas de que ibirapema é um instrumento de madeira feito pelos Tupinambás antigos para sacrificar ritualmente seus prisioneiros de guerra, e ouvimos a mulher Ibirapema dizer que o Tupinambá se transforma em onça antes de ingerir carne humana. E lá vai a mulher em pele de onça conversar com outros corpos da escultura moderna e subir a escadaria do Theatro Municipal, camuflada nas cores da pintura de Tarsila, fazendo sua dança re-antropofágica.
A Yawar, onça que foi “tirada do chão”, “que brota da terra” (ibira, em tupi), conta suas histórias enquanto trança o ibirapema (“pau trançado”). Ela diferencia o que é a vida indígena contemporânea do antigo tempo das origens e da história geológica (quando a busca das origens é também a da possibilidade de um futuro).
Nós, a terra, as pedras e os subsolos, temos escalas temporais desmedidas em relação aos seres vivos. Somos arquivos. Viemos de outras estrelas e guardamos em nossas camadas geológicas as histórias viventes de 4 bilhões e meio de anos. Somos profundas e somos rasas. Em nossa superfície, acolhemos as viagens que Igi Ayedun fez pelos desertos de areia e de lama do Mali, da Nigéria e das rotas nômades berberes do Marrocos, investigando a genealogia afrodiaspórica. Atravessando rotas de tecidos e aprendendo técnicas ancestrais de tingimentos, Igi experimentou a inteligência de nossa matéria mineral. Encontrou no índigo e no lápis-lazúli o testemunho de uma grande parte da história da humanidade, que havia ficado soterrada pelos estudos da história da arte ocidental. Estudou as reações orgânicas da cor azul e desencavou pilares e alicerces de mitologias secretas que guardavam outros valores culturais. Mergulhou em piscinas de água pigmentada e tirou de baixo da terra um modo de pintar que chamou de “pintura não ocidental pré-colonial”.

Igi mexeu com muitas mídias. Em vídeos 3D, especialmente naquele em que diz que “Imenso é o mundo que ainda guardo em mim” (2020), ela pisou em solos sedimentados, desenhou desertos minerais azuis e colocou em prática seus idiomas inventados, com misturas fonéticas de português, iorubá, hebraico, iídiche, árabe e francês. Línguas subcutâneas, línguas de sua formação. Sua linguagem das pedras conversa com a mineralogia visionária de André Breton. “Nefumiri las costras, neislin” / “Calamedan mofis seyô kê” / “Guo, guo, guo, guo!”. Dos minerais entrelaçados aos vegetais nasce também a proposta relacional das criações de Claudia Jaguaribe. Nós, estrelícias, protagonizamos, com outras espécies companheiras que também habitam as regiões tropicais e subtropicais, a série Flor do Asfalto (2020-2022). Em suas fotomontagens, Jaguaribe investiga a invenção dos bichos humanos conhecida como “jardim”, esse espaço criado para proporcionar, nas selvas de pedra, alguma conexão entre homem e natureza, que para a artista concentra a dinâmica dos ciclos de crescimento, floração e declínio como reflexo da sociedade que o molda. Na simbiose entre flores e formas asfálticas, recortadas para parecerem orgânicas, fica evidente o sufocamento da natureza promovido pelos jardins.
DIREITO SELVAGEM
O futuro é indígena. Mas, desde 2018, forças comprometidas com a fragilização da democracia brasileira nunca deixaram de trabalhar pela diminuição dos direitos indígenas. A escalada de crescimento da violência aos povos está relacionada a uma série de medidas do Poder Executivo que favorecem a exploração e a apropriação privada de terras indígenas e o avanço de projetos de lei que dificultam a demarcação. A mais recente das teses jurídicas formuladas para suprimir direitos e facilitar a mineração é o marco temporal que propõe que sejam reconhecidos territórios indígenas somente as terras que estavam ocupadas por eles na data de promulgação da Constituição Federal (5 de outubro de 1988). Mas o artigo 231 da Constituição estabelece que os direitos indígenas são “direitos originários”, anteriores à formação do Estado brasileiro. A inconstitucionalidade dessa tese que banaliza uma violência histórica sofrida desde a invasão colonial, que chancela a necropolítica e os seguidos ciclos extrativistas de uma Economia da Destruição, é enfrentada por juristas, estudiosos de Direito e artistas.

A Reviravolta de Gaia nasceu de um desejo das artistas Rivane Neuenschwander e Mariana Lacerda de chamar atenção para a inconstitucionalidade dessa tese, que, segundo afirmam, se aprovada, será catastrófica para os povos originários. A primeira aparição pública do projeto florestal das artistas aconteceu em agosto de 2021, quando se abria a votação do marco temporal pelo STF, em Brasília. Entre as mais recentes, deu-se no ato em defesa do Estado Democrático de Direito e do sistema eleitoral brasileiro, na manhã de 11 de agosto último. Nós, jabutis, jacarés, sapos, araras, garças, lagartas, preguiças e jaguares, entre tantos outros bichos e plantas da floresta, comparecemos com nossos cartazes e gritamos pelos “direitos selvagens”. Temos as almas cansadas e saturadas pelo drama político em curso (que trava também batalhas no campo da estética e da semântica), mas estamos vestidos para levar, propor, pensar e imaginar outra linguagem para as manifestações. Entrar no campo da gramática de conflito para provocar fricções sociais com novas formas e conteúdos. Em A Reviravolta de Gaia cresce a inquietação em colocar na rua a pauta ambiental, lançando a provocação de se pensar a natureza como um sujeito de direitos. Como é na Constituição do Equador e constava no projeto da nova Carta do Chile, reprovado em plebiscito.
Na Amazônia equatoriana, a natureza foi declarada um sujeito de direitos em 2013. No fim daquele ano, quando este novo “contrato social multiespécies” estava sendo redigido no Equador, Ursula Biemann e Paulo Tavares viajavam pela Amazônia, compondo uma paisagem-mosaico de múltiplas perspectivas da floresta, reunindo entrevistas, vídeos, fotos, documentos jurídicos e análises cartográficas. Nós, árvores, líquens, rios, vales, praias, cordilheiras, estuários, mangues e outras formas não antropogênicas mostramos que também sabemos falar e demos nossos testemunhos para a formação de um documento de animismo jurídico em defesa dos direitos dos ecossistemas. Nossos argumentos compõem o projeto Floresta Jurídica, de Biemann e Tavares, apresentado na 32a Bienal de São Paulo, em 2016.

LUGAR DE FALA
Nós, cupins, somos símbolos de resistência. Construímos ninhos-catedrais que nenhuma arquitetura humana jamais sonhou conseguir realizar, e edificações nossas já foram datadas por cientistas em mais de 2 mil anos (elas seguem de pé, na savana africana, por exemplo). Em 2013, quando os povos Kichwa de Sarayaku lutavam no Equador pelos direitos coletivos de todos os seres viventes, fomos representar as térmitas operárias em uma instalação site-specific de Cildo Meireles no Parque de Serralves, no Porto. Cildo estava fazendo uma imensa exposição no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, mas a obra em que fomos morar não caberia dentro de um museu, daí ela ter ido parar no parque. Parques são espaços intermediários entre os cupinzeiros de concreto em que vocês vivem e os ecossistemas em que nós construímos os nossos. A instalação, obra então inédita de Meireles, foi batizada por ele de Nós, Formigas (2013). Funcionava assim: um guindaste suspende uma pedra quadrada de granito sobre uma cavidade no solo. Um ninho de cupins instalado na base do cubo pode ser visto por quem desce uma escada de madeira até o buraco cavado na terra. Dalí, de baixo, pode-se observar, olhando para o alto, a nós, cupins, ocupados criando as nossas engenhosas paisagens, canais e rotas em uma espessa camada de terra.
Essa instalação que coloca as térmitas obreiras para trabalhar tem o objetivo de transtornar a percepção de espaço dos espectadores e dar a devida dimensão simbólica à escala humana. “Nós, Formigas é uma obra que explora o encontro entre o capitalismo industrial e a natureza”, disse Cildo Meireles na ocasião de sua mostra em Portugal. Houve quem interpretasse sua frase como metáfora, como se o artista estivesse confrontando a imensidão do capitalismo com as “forças incontidas da natureza”, representadas por nós, cupins. Do nosso ponto de vista, entretanto, são as forças incontidas do capitalismo que estão sendo enfrentadas pela imensidão da natureza neste trabalho de arte. Parece-nos, se nos permitem uma leitura crítica da obra, que nem a citação acima é metáfora nem muito menos o título do trabalho: vocês, humanos, são de fato as formigas nesse jogo de escala proposto por Meireles. E, aproveitando a oportunidade desse diálogo, consintam-nos informar que, quando nos acusam de sermos uma “praga”, porque comemos a madeira de suas preciosas estantes ou dos mourões, cercas e celeiros de suas propriedades rurais, estamos apenas cumprindo a nossa nobre missão de eliminar a necromassa do ecossistema. Para nós, cupins, a verdadeira praga são vocês, que matam mais árvores do que somos capazes de processar. Pronto, falamos.