A PSIQUE COMO HIDRELÉTRICA
O modelo psicanalítico clássico do aparelho psíquico funciona como uma hidrelétrica: de um lado, no corpo erógeno, uma força incessante, como um rio, chamada pulsão; de outro, um polo de descarga dessa energia; e, no meio, a barragem, um sistema que organiza o quanto, por que e como a excitação passa de um polo ao outro. Essa energia, a princípio livre, polimórfica, é o que a barragem recalca, desloca e transporta, dando a esse fluxo um curso. Não se trata de um desvio, porém, porque não existe finalidade prévia – ou melhor, ou que dá na mesma, tudo é desvio. Ao contrário da ideia comum de que todo rio busca um mar, alguns levam a lagos ou desaparecem em desertos e subterrâneos, além daqueles que só se formam sazonalmente. Essa variância é a libido, ilustrada pela sexualidade humana, na qual a reprodução não é um destino, mas uma de suas muitas vazões.
Entre as modalidades que a pulsão pode ter, está a sublimação. Ela descreve uma problemática pessoal que se transforma em algo para a sociedade. Por exemplo, o tempo vazio de uma velhice que é dedicado à invenção científica. Mas há certos poréns aqui. Ainda que esse modelo pareça ciente de que a barragem, como processo de socialização, produz modos particulares de condutas e vínculos – que fazer bebês e gerar eletricidade se impuseram como dinâmicas tão ou até mais violentas do que a natureza que a cultura tenta controlar, pois não há civilização sem mal-estar –, isso ainda é otimista o bastante para ser ingênuo. Não há nenhuma garantia do êxito social da sublimação, tanto no sentido de a coisa funcionar quanto de suas consequências desaguarem no bem comum.
Meu avô foi um homem com pouca instrução formal e uma obsessão na velhice: acoplando arames, ímãs e bolinhas de ferro, ele queria construir um dispositivo capaz de gerar energia pela sua própria propulsão. A cada derrota, eu ganhava algumas peças para brincar, que eram como móbiles ou festas abstratas em miniatura. Foi só alguns anos depois de ele morrer que eu descobri que sua máquina era impossível. Uma luta em vão contra o cosmo. Por milênios, a humanidade tentou montar essa engenhoca, buscando um movimento perpétuo que produzisse energia do nada, mas poucas coisas são tão inglórias quanto contrariar a termodinâmica. Embora moinhos de água existam desde a antiguidade, transformando a energia cinética dos rios em energia mecânica para moer grãos, serrar madeira etc., foi com a constatação de que a energia não pode ser criada nem destruída, mas apenas transformada, que algo como uma hidrelétrica foi possível.
O MUNDO COMO HIDRELÉTRICA
Essa poderia ser uma história edificante sobre a nossa espécie e o conhecimento que, apesar de tropeços, como os do meu avô, narra a ascensão de bípedes que não só se puseram de pé e caminharam eretos, mas erigiram um mundo cada vez melhor para si mesmos, culminando na era das luzes. Mas não é. O problema com essa versão da psique hidrelétrica é que ela é menos uma metáfora psicológica do que teológica: assim o ser humano seria feito à imagem e semelhança de um Criador, o mundo seria um espelho da nossa vontade. Na história das ideias e das práticas, isso significou conceber tudo que não somos nós como algo despossuído de vontade própria – e submetido à nossa –, indissociável de um discurso que desujeita e objetaliza a assim chamada natureza, em nome do progresso.
Na leitura de Heidegger sobre as particularidades da técnica moderna, uma ponte, ao unir as margens do rio, desvelaria algo não só da ponte, mas também do rio e de nós, e suas coexistências mostrariam que habitamos um mundo e não apenas uma paisagem. Assim como um moinho de água, a ponte não anularia o rio ou a gente, mas seria uma forma de conhecimento que só é possível se as imbricações do todo não interferirem naquilo que constitui as partes; uma maneira de reconhecermos a marca da nossa experiência nelas, bem como a nossa e as suas próprias existências. Com a hidrelétrica é diferente. Nela, o rio é acoplado a algo no qual ele deixa de ser um rio para se tornar um recurso, disponível, calculado, que serve à única finalidade de gerar energia, ocultando outros modos de ele aparecer para nós, e, com isso, subtraindo não só as possibilidades de como nos relacionamos com ele, mas também com nós mesmos.
Por isso, algumas técnicas mostram o mundo e outras o escondem. E a tendência e o perigo, na modernidade, seriam fazer de tudo uma Grande Hidrelétrica, um meio para fins – inclusive nós, que seríamos igualmente enquadrados em um fechamento no qual ser seria reduzido a ser útil, estar em prontidão. Se aquilo que uma coisa “é” é sempre um modo de ela se dispor no mundo, a hidrelétrica seria um paradigma da fixidez calculista. Não cabe aqui discutir essa leitura, mas é preciso apontar que nela o mundo nunca está separado de nós, e esse é seu limite. Apesar do contraste com o humanismo iluminista, o ser das coisas – ou como se queira chamar e diferenciar de outros termos – está decisivamente correlacionado com o ser humano, mas não se coabitam sem mais.

A HIDRELÉTRICA COMO PSIQUE
Uma maneira de tentar contornar essa correlação entre pessoas e coisas consiste curiosamente em dobrar a aposta na correlação, como faz David-Ménard: coisas têm pessoalidade, assim como pessoas têm coisidade. Haveria coisas não vivas que seriam animadas por nós, como se fossem possuídas pela nossa vontade, porque doamos socialidade a elas. Mas essa vontade, por ser social, nunca é completamente nossa.
Afinal, o social não é um todo disponível. E é por nunca termos acesso direto a ele que as coisas que a gente põe em movimento teriam uma espécie de autonomia, pois aquilo que colocamos nas coisas sempre vai exceder o que sabemos, e esse excesso se faz presente nelas. Nesse modelo, a relação entre as coisas nunca é direta, mas mediada pelas pessoas. De modo inverso, a relação entre as pessoas sempre é mediada pelas coisas, que nos põem em movimento e, na medida em que têm algo que desconhecemos, que é social, nossos pensamentos e ações vão necessariamente exceder nossas intenções.
Ainda assim, as relações entre pessoas (P) e coisas (C) não podem ser pensadas como séries simples que intercalam esses termos, como em pessoa-coisa-pessoa e coisa-pessoa-coisa, na qual o social seria como uma sequência PCPCPC…, e assim em diante. O que leva a um segundo modelo. Desde a modernidade, a tendência é que um número maior de coisas se interponha entre as pessoas, como em PCCCCCP, mesmo que a gente não perceba isso cotidianamente. O relevante aqui é que isso abre a possibilidade da existência de séries CCC, nas quais há apenas relações entre coisas. Não foi isso que meu avô tentou construir? C-arames, C-ímãs e C-bolinhas de ferro. Seu fracasso não é menor nem maior que o nosso, mas é diferente, porque não teve efeitos – afinal, a ideia era produzir efeitos sem causas, ao passo que, para nós, os efeitos se autonomizaram das causas.
É claro que essas coisas também têm pessoalidade porque têm socialidade, mas, se pensarmos que há cada vez mais coisas mediando as relações, isso significa que o social é cada vez mais coisificado. Daí as coisas terem cada vez menos pessoalidade e as pessoas cada vez mais coisidade. Uma hidrelétrica não pode mais ser vista como algo que as pessoas fazem funcionar usando as coisas, mas que as coisas fazem funcionar usando as pessoas. Apesar de gostarmos de imaginar que as atividades pensantes são nossas e os processos mecânicos estão relegados às coisas, basta olhar de perto para ver o contrário. No mais das vezes, operadores e técnicos executam ordens de um sistema, de acordo com algoritmos e sensores, apertando botões e seguindo protocolos. Suas ações são reativas e preventivas, e não estão menos a serviço da hidrelétrica do que o rio.

A HIDRELÉTRICA COMO MUNDO
Pense em uma câmera monitorando o fluxo de pessoas que entram e saem de um bloco da hidrelétrica. Seu campo de visão é um corredor. Nos turnos de pouco movimento, como na madrugada, ela passa horas registrando apenas o piso e as paredes. Em alguma sala, um alguém pode acompanhar a transmissão ao vivo, mas, na maior parte da noite, está mais atento ao feed do celular. Como não houve intercorrência, a gravação será apagada, mesmo que depois de anos. Esse tempo, em que ninguém passou pelo corredor e nenhum olhar humano se deteve ali, foi apenas uma relação entre coisas, mas isso consumiu energia da hidrelétrica. E sua manutenção vai seguir mobilizando pessoas dia após dia. Essa é a descrição de algo aparentemente trivial.
A maior parte daquilo com que a gente se relaciona não está vivo – reservatórios, túneis e condutos, parafusos, cabos, lâmpadas, portas e janelas, mesas, cadeiras, lixeiras –, mas se faz presente de modo decisivo na nossa vida. E a questão não é exatamente que o mundo tem cada vez mais coisas e coisidade, mas que ele precisa cada vez menos de pessoas. A tendência e o perigo não é que a modernidade faça de tudo uma Grande Hidrelétrica na qual estamos dentro e que as coisas nos usam, mas sim da qual estamos fora porque não temos utilidade alguma. Em algum momento, o operador responsável pelo monitoramento em tempo real da câmera vai ser substituído por alguma coisa. E a emergência da onda generativa das assim chamadas inteligências é só o agravamento do que começou há tempos. Isso não é de modo algum um elogio ao trabalho, mas o apontamento que seu fim pode não ser emancipatório para nós.
Muitas pessoas escreveram sobre tudo isso, mas poucas conceberam a hidrelétrica se tornar um mundo fechado em si mesmo. Em certo sentido, não há diferença entre a máquina impossível do meu avô – mesmo ela não sendo extrativista –, o modo da modernidade conceber o mundo como um recurso infinito – que é extrativista por excelência – e a crença em alguma força de alinhamento entre pessoas e coisas a nosso favor. Pensar um mundo sem nós costuma soar como uma afronta, heresia ou bobagem especulativa, embora nossa presença nele seja temporalmente ínfima. Em geral, imaginamos um passado caricato de pedras, plantas e bichos, marcado por uma falta à espera da nossa chegada; e o futuro sem nós como repetição do que supostamente havia antes. Essa resistência não é senão uma barragem narcísica, antropocêntrica, incapaz de conceber uma hidrelétrica funcionando para fins que desconhecemos, apenas porque não estaremos lá.