Educadores, formadores e mediadores são os primeiros interlocutores da 34ª Bienal, a quem estes Primeiros Ensaios são prioritariamente endereçados. Mas a pergunta que vem é: em que medida a publicação educativa corresponde às relações que irão se estabelecer entre as obras no espaço expositivo e irá entregar ao educador os elementos sobre os quais trabalhar? A melhor resposta seria: alguma. Ou, a mínima possível. Afinal, o espaço editorial tem sua especificidade e independência em relação ao expositivo, especialmente quando ele é organizado com antecipação temporal de vários meses.
Diante desse “problema”, tem-se em mãos um objeto que, embora se estruture conceitualmente sobre as mesmas intenções que mobiliza a equipe curatorial na organização da exposição, tem uma existência autônoma. É certo que ele é feito para arar o terreno sobre o qual os professores vão trabalhar. Mas, com uma estrutura narrativa próxima a de uma revista, reúne artigos, ensaios, entrevistas, textos literários e ensaios visuais comissionados, propondo reflexões que servem também a pesquisadores engajados em outros propósitos que não, necessariamente, a exposição que entra em cartaz em 3/10.
A publicação se organiza em torno de três “enunciados”, que podem ser comparados aos “dossiês” de uma revista. O enunciado não é o tema. “É algo que ajuda a definir, mas que não é impositivo e que não é 100% claro pra ninguém”, diz o curador geral Jacopo Crivelli Visconti na entrevista de abertura. É uma espécie de fantasma de tema, então. “É aquilo que não se encerra em uma leitura”, continua. Bem, quando uma revista ou uma bienal elegem um tema – uma frase-tema, um poema-tema, uma música-tema, um livro-tema etc –, ela jamais se encerra em uma só leitura, por um simples motivo: tanto a revista quanto a bienal são acontecimentos coletivos. Seus colaboradores são artistas, cientistas, pesquisadores e escritores de origens diversas; cada qual emprestando uma tonalidade específica ao enunciado original. Na mesma entrevista, o curador adjunto Paulo Miyada assume que a curadoria “lida com um desafio que é também dos escritores e dos artistas, o desafio criativo”.
Esse é realmente o tom destes Primeiros Ensaios, cuja organização prima por uma bem-vinda liberdade criativa. São três os seus enunciados: o meteorito do Bendegó, o sino de Ouro Preto e um conjunto de retratos do jornalista, fotógrafo e abolicionista norte-americano Frederick Douglass (1818-1895). Os temas que emergem do enunciado Douglass se equiparam às questões levantadas pela performance de Neo Muyanga, que inaugurou os trabalhos da 34ª Bienal, em março. Ambos coincidem em trazer para a linha de frente – dos espaços editorial e expositivo – a pauta do racismo estrutural e a herança escravocrata social. Uma figura chave e luminosa que emerge no dossiê Douglass é o ator, artista e intelectual Abdias do Nascimento (1914-2011), lembrado como diretor de redação do jornal Quilombo (1950) no ótimo texto de Nabor Jr. sobre auto-representação na imprensa negra brasileira de 1833 a 2019; e no texto de Salloma Salomão Jovino da Silva, como fundador do Teatro Experimental Negro (1944). Não surpreenderia que Nascimento estivesse entre os artistas históricos da 34ª edição (ainda não anunciados).
Mas surpreende que Daniel de Paula tenha sido o artista convidado a elaborar um ensaio visual (ou obra específica para o meio editorial) em diálogo com o enunciado Douglass e não com o enunciado meteorito do Bendegó. Embora o artista tenha como linha de pesquisa os espaços enquanto reprodução de dinâmicas de poder, Daniel de Paula se encontrava recentemente envolvido com uma pesquisa sobre uma cratera de meteoro na região de Parelheiros, zona sul de São Paulo. Portanto, há uma ponte aqui, entre inúmeras outras possíveis de serem construídas. Bendegó é outro ponto nevrálgico da publicação, pois além de trazer um corpo estranho para o centro do debate artístico, ilumina um símbolo do colapso cultural brasileiro, o incêndio do Museu Nacional. À história de seu deslocamento do sertão da Bahia para a Quinta da Boa Vista, no Rio, soma-se agora sua reaparição na 34ª Bienal, em forma de enunciado. Neste contexto, espera-se que possa contribuir para as ações de re(x)istência de uma comunidade que, em outubro, estará combalida por longos meses batalha contra a pandemia e o sistema necropolítico.
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