A exposição Lucas Arruda: Qu’Importe le Paysage é um marco: pela primeira vez, um pintor brasileiro realiza uma mostra individual no Musée d’Orsay, o museu francês mais visitado depois do Louvre. Tal conquista, de proporção monumental, contrasta com a natureza mesma do trabalho de Arruda, que, nos últimos 15 anos, tem se dedicado majoritariamente a pinturas silenciosas em pequeno formato. São paisagens mnemônicas, situadas no limite entre o figurativo e o abstrato. Instaladas na galeria impressionista, suas obras encontram-se como que infiltradas entre clássicos do movimento artístico francês. Sem molduras e em sua maioria diminutas, as telas de Lucas Arruda atualizam e trazem leveza para a maneira como observamos as chefs-d’œuvre que integram a coleção do museu. Produzidas entre 2013 e 2025, as obras presentes na exposição pertencem à série Deserto-Modelo, cujo nome advém do verso de um poema de João Cabral de Melo Neto. Em Medinaceli,1 o poeta evoca a noção um tanto paradoxal de um deserto que pode ser projetado, da construção do nada: “onde engenheiros, armados / com abençoados projetos, / lograram edificar / todo um deserto modelo”. Temos aí uma pista do que anima sua produção: investigar o que esses cenários desabitados revelam — o que se constrói de tão impactante e invisível nos espaços fora do tempo que são os desertos.
Em um mundo saturado de coisas construídas, a ironia dos “engenheiros e seus abençoados projetos” poderia ser transposta para a realidade dos artistas e suas abençoadas imagens. À Arruda parece interessar como enxugar, como dar aos olhos uma trégua. Há ironia também no próprio título da exposição: ao mesmo tempo que se inscreve na tradição das pinturas de paisagem, o artista se pergunta por que esse assunto importa, ecoando Manuel Bandeira em seu Poema do Beco: “Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? / — O que eu vejo é o beco.”2

PAISAGEM INTERIOR
Tema que atravessa a história da arte, reinventado com primor justamente pelos impressionistas, a paisagem em Lucas Arruda nasce da memória de um ambiente e da luz que revela mundos interiores. De modo que o que importa, ao que parece, não é a paisagem em si, mas o que ela abarca e o que dela persiste. Sejam as suas visões da mata atlântica, memórias das visitas à casa da família na Barra do Una, sejam as visões marítimas-celestes, traçadas por uma cada vez mais baixa linha do horizonte, as pinturas de Arruda buscam o vigor da sutileza e estudam a variação dentro da repetição.
Para iluminar a mata ou o céu-mar em fusão na linha do horizonte, o pintor opera uma espécie de escavação. As suas telas são dotadas de uma luz que vem do fundo, ou seja, que vem à tona pela remoção das camadas de tinta. Assim, é o próprio suporte que ilumina a obra, o que dá profundidade e textura às composições a partir de procedimentos mínimos. E é neste percurso de subtração e condensação que o artista chega aos seus monocromos, por ele considerados “um muro de luz”.3 Produzidos em formatos maiores, se entregam de forma mais imediata ao público do que as paisagens, que demandam uma aproximação física para serem propriamente vistas. Ao incitar no público esse deslocamento do corpo em direção ao quadro, é como se o artista reproduzisse o movimento que ele mesmo exerce para acessar as paisagens em sua memória no ato da pintura.
MOTIVOS RECORRENTES
Assim como Monet, Arruda também retorna obsessivamente a certos motivos. O seu método, porém, contrasta com o mito dos impressionistas que deixam o ateliê para se misturar à paisagem e pintá-la com agilidade, capturando as variações de luz e movimento diante dos seus olhos. Em Arruda, a observação é interior. Ainda que os caminhos tomados por um e outro para abordar o tema sejam opostos, uma das relações mais felizes estabelecidas pela mostra ocorre ao aproximar das célebres pinturas da Catedral de Rouen, de Monet, as visões de Arruda da Barra do Una — com as copas das árvores que ora se avolumam e quase fecham o céu, ora são engolidas pela neblina
Se as telas dos impressionistas tinham um formato menor do que as convenções à época para serem portáteis e transitarem entre o exterior e o ateliê, nosso olhar de hoje já não reconhece de pronto como as dimensões dessas obras operaram uma mudança sensível nos paradigmas do fim do século 19. Envolvidas por molduras pesadas e pomposas ali no Musée d’Orsay, o dinamismo da sua gênese é quase inimaginável. Por outro lado, as obras de Lucas Arruda, mostradas de forma livre e sutil, em formatos ainda menores, dessacralizam as convenções do gênero enquanto adotam as suas principais preocupações e temas (luz, tempo e paisagem). Com isso, contribuem para que nos reconectemos com o frescor das telas impressionistas, ao mesmo tempo que se veem elevadas em uma exposição que consagra o pintor brasileiro.
Notas:
1 Poema publicado originalmente no livro Quaderna (1960).
2 Poema publicado originalmente no livro Estrela da Manhã (1936).
3 “Nos monocromos, gosto que as pessoas se percam na atmosfera colorida gasosa, sem identificar distâncias, como se estivessem diante de um muro de luz.” O artista em entrevista presente no catálogo Lucas Arruda: Lugar sem Lugar. Curadoria Lilian Tone. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2021, p. 20.