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Energy Charge (1975), de Ana Mendieta [Foto: © MENDIETA, ANA/ AUTVIS, BRASIL, 2023]
Postado em 16/01/2024 - 2:22
Realidades Colaterais
Exposições no Sesc Pompeia mostram a íntima correspondência entre a land art feminista de Ana Mendieta e a ficção especulativa

Estar em vários lugares ao mesmo tempo é uma fantasia recorrente da ficção científica. Ter várias existências materiais concomitantes, incorporações, e pensar e comunicar por meio de linguagens híbridas – humanas, além-de-humanas e mais-que-humanas –, são pressupostos da ficção especulativa, especialmente da feminista, um ramo do sci-fi com foco em futuros possíveis. 

Matrix Vegetal (2022), da artista chilena Patricia Domínguez, é um desses casos. Não é uma coisa só, nem está em um só lugar, nem assume uma forma só. Exibida simultaneamente em exposições em São Paulo e no Rio, é tanto instalação quanto vídeo, filme-ensaio, laboratório de pesquisa etnobotânica e prática de cura. Em diferentes formatos, tamanhos e acabamentos, integrou a mostra Vida Transbordante e os Desejos do Mundo, no Solar dos Abacaxis, no Rio, até outubro, e está em cartaz na coletiva terra abrecaminhos, mostra colateral da exposição Ana Mendieta; Silhueta em Fogo, curadoria geral de Daniela Labra e curadoria adjunta de Hilda de Paulo, no Sesc Pompeia, em SP, até janeiro de 2024. 

Na árvore genealógica do realismo especulativo, esta obra poderia ter, como ancestral, Floresta É o Nome do Mundo (1972), romance de protesto da escritora estadunidense Ursula K. Le Guin. Com a diferença de que a protagonista de Matrix Vegetal não vive em um mundo “totalmente feito para homens” e para a monocultura de grãos, como se desenha em Le Guin. A mulher não é um corpo dominado e a natureza que a cerca não está arrasada. A personagem da instalação de Domínguez deriva por uma mata exuberante que em nenhum momento se reporta ao mito da pureza e da virgindade, mas vive uma condição de pós-natureza, ou extranatureza, em que todas as superfícies vegetais são sensíveis ao toque inteligente.

Matrix Vegetal (2022), de Patricia Domínguez (Foto: Paula Alzugaray)

“Ative sua tela interior.” “Recodifique-se em aliança vegetal”, comanda a voz em off da narradora, na medida em que um corpo híbrido de mulher-pássaro envereda por uma trilha na mata densa, produzindo ao redor de si um halo de luz que aos poucos se transforma em camada de informação. Um corpo que caminha na mata e produz informação.

Simultaneamente, do outro lado da sala de Convivência do Sesc Pompeia, em Ana Mendieta: Silhueta em Fogo, outra experiência de toque sensível se produz. Em uma das 21 telas grandes que exibem os filmes-performances gravados pela artista cubana entre 1972 e 1981, uma árvore é enquadrada em um plano fixo, gerando uma imagem estática em preto e branco. A convicção fotográfica se desfaz quando uma sombra silhuetada entra em cena, atravessa o quadro em direção à arvore e abraça seu tronco. Plasmada contra a superfície vegetal, a silhueta humana é então convertida em vermelho-sangue. E a imagem volta a se congelar. 

Em Energy Charge (1975), o contato energético que Mendieta estabelece com a árvore ocorre quase cinco décadas antes que a internet das coisas comece a ser aplicada à natureza e antes que as peles das árvores da ficção de Patricia Domínguez sejam tocadas como telas com tecnologia touchscreen. 

Nessa comunicação silenciosa entre obras de exposições paralelas, outra sincronicidade ocorre. Na videoperformance Tierra (2013), a artista guatemalteca Regina José Galindo está nua sobre um terreno de terra revolvida, emoldurada por uma máquina escavadeira. A fragilidade de seu corpo em relação ao monstro com dentes de aço alude aos crimes políticos e humanitários cometidos pelo ex-ditador da Guatemala. O solo revolvido é uma remissão direta às valas comuns onde camponeses e indígenas foram atirados depois de assassinados. 

Um contraste entre as relações corpo–terra–máquina marca esses trabalhos. O empoderamento por meio da energia eletrônica, no vídeo de land art feminista de Mendieta, e da energia digital, na obra de Domínguez – e aqui se acrescente uma terceira artista simultaneamente em exibição na cidade, Vitória Cribb e seu BUGs (2023), na Mostra Sesc_Videobrasil –, é um projeto avançado de subversão e superação das concepções ocidentais dominantes da realidade. Tem um parentesco muito próximo às tecnologias de cura e as cosmologias indígenas e afro-indígenas que ganharam as artes por meio dos movimentos de retomada.

SERVIÇO
Ana Mendieta: Silhueta em Fogo e terra abrecaminhos
Até 21/1/24, Sesc Pompeia, Rua Clélia, 93, São Paulo – SP
sescsp.org.br