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De Malditas a Desejadas (2013), de Jaider Esbell (Foto: Cortesia do artista)
Postado em 01/09/2021 - 10:44
Reflexões em um observatório avançado da arte indígena contemporânea
Coluna Móvel de Paula Berbert na edição #51

A brisa fresca anunciava a chegada da chuva, uma presença quase diária nos lavrados de Roraima durante o inverno amazônico. Passando o tempo devagar, de depois do almoço, na varanda da Galeria Jaider Esbell de Arte Indígena Contemporânea, fiz a seguinte pergunta ao artista e curador do povo Makuxi:
– Jaider, o que é uma comunidade para você?
– Comunidade é uma rede de relações, respondeu ele, sem titubear.

Esta definição, que me surpreendeu pela sofisticação concisa, permanece ecoando nesses dias de imersão em Boa Vista. Estamos aqui trabalhando nos preparativos de uma agenda intensa para os próximos meses: a participação de Jaider na 34ª Bienal de São Paulo, a produção da exposição Moquém_Surarî, organizada por ele para o MAM-SP, e a mudança de sede de sua galeria. Catalogando, embalando e separando as centenas de obras, livros e documentos de seu acervo, revisito a trajetória de Jaider e da articulação de uma cena local da Arte Indígena Contemporânea (AIC), cuja história se embaralha com os caminhos abertos por ele e as iniciativas impulsionadas pela própria galeria.

A afinidade de um grupo de artistas indígenas de Roraima ganhou outro corpo a partir da provocação curatorial lançada por Jaider Esbell em 2013, que os convidou a produzir obras que abordassem as particularidades da invasão colonial em seus territórios originários, destacando as estratégias indígenas de resistência. Firmados em sua raiz comum, que é o parentesco partilhado com o grande avô ancestral Makunaimî, Jaider, junto a Carmézia Emiliano e Diogo Lima, do povo Makuxi, Amazoner Arawak, do povo Wapichana, Bartô, Isaias Miliano e Luiz Matheus, do povo Patamona, e Mario Flores, do povo Taurepang, produziram a série coletiva Vacas nas Terras de Makunaima: de Malditas a Desejadas, em 2013. Os trabalhos que compõem esse conjunto foram comissionados para o 1º Encontro de Todos os Povos (evento também organizado por Jaider Esbell, que reuniu em três edições a produção de artistas originários da região) e demonstram a relação de pertencimento que os indígenas mantêm com a terra.

Olhar novamente para essas obras, que serão apresentadas em breve ao público em São Paulo, leva meu pensamento a outra definição certeira de Jaider, que dias atrás me ensinou que as artes indígenas, tal como o manejo tradicional da espiritualidade (xamanismo?), são um conjunto de tecnologias para manter as relações com a terra. A memória antiga e a continuidade presente dessa relação talvez sejam as maiores forças movimentadas pela AIC, um convite e um lembrete que nos fazem os artistas indígenas de Roraima: tecer relações com a terra, ser dela parente, fazer comunidade com ela.