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Vista de Thread (1990-1995) , de Cildo Meireles [Foto: Cortesia Museum of Modern Art]
Postado em 07/06/2023 - 12:46
Repensar a Retidão
Exposição no MoMA com recorte da coleção Patricia Phelps de Cisneros mostra como suas iniciativas contribuíram para expandir um acervo conservador

A exposição Chosen Memories: Contemporary Latin American Art from the Patricia Phelps de Cisneros Gift and Beyond, no MoMA, em Nova York, finca dois principais marcos, que também podem ser entendidos como caminhos que se entrelaçam. O primeiro deles, no âmbito conceitual e historiográfico, é a noção de memórias escolhidas, como indicado no título da exposição. Além de espelhar a própria prática curatorial de selecionar imagens e narrativas, atesta que a escolha das memórias dos povos latino-americanos pode ser feita de forma ativa pelos próprios e não esmagado por um apagamento eurocêntrico. Tal postura privilegia a memória como âmbito do conhecimento e da humanidade maior que a disciplina da história como ainda prevalece – pautada por diretrizes hegemônicas e silenciadoras de corpos dissidentes e colonizados, com paulatinas mudanças através de muitos esforços. Os trabalhos apresentam densa carga questionadora quanto à dada constituição da história sufocante, propondo revisões que melhor abarquem as singularidades memoriais pessoais e coletivas latino-americanas.

O segundo ponto versa sobre o colecionismo e a formação de acervos museológicos, entendendo que as iniciativas lideradas por Patricia Phelps de Cisneros no MoMA expandiram drasticamente um acervo conservador. Além de doações de trabalhos de artistas latino-americanos para a coleção do museu, instituiu-se no MoMA o Instituto de Pesquisa Patricia Phelps de Cisneros para estudo da arte latino-americana, a fim de estimular, apoiar e disseminar novas leituras e escritas sobre a produção artística moderna e contemporânea na região, em diálogo com problemáticas culturais específicas ampliadas a um contexto global. O “and beyond”, no título da mostra, indica que as diretrizes formativas do acervo do museu foram revisadas a partir das iniciativas lideradas por Cisneros e que, hoje, a presença de obras de artistas latino-americanos no museu não se restringe ao fundo da patrona, mas se expandem em trabalhos recentemente adquiridos e doados por outros agentes.

Curada por Inés Katzenstein, curadora de arte latino americana e diretora do Instituto Cisneros, e Julia Detchon, assistente curatorial, a mostra apresenta vídeos, fotos, pinturas, esculturas e instalações de 39 artistas – brasileiros, dominicanos, mexicanos, cubanos, uruguaios, colombianos, peruanos, guatemaltecos, porto-riquenhos, argentinos, venezuelanos, ianomâmis, afro-caribenhos e chilenos – que atestam o pioneirismo dessa produção em pontos cruciais do pensamento contemporâneo e da formação de um legado incontornável para a história da arte mundial. “Rejeitando a nostalgia, os artistas escolhem acessar a história, a tradição e lembranças pessoais com um espírito crítico e reconstrutivo”, argumenta o texto curatorial.

Reconstruir a história

No corredor de entrada, ressoa a obra sonora do guatemalteco Naufus Ramírez-Figueroa, que reproduz cantos de aves extintas previamente desconhecidas pela ciência, mas recuperada através de sessões espíritas kardecistas – doutrina bastante popular em países latinos. A pesquisa de Ramírez-Figueroa reitera a obsolescência de tecnologias puristas que analisam e estudam a natureza a partir de fontes controláveis e cognoscíveis, rejeitando serem abastecidas por matrizes espirituais. De forma transversal, a brasileira Maria Laet apresenta Notas Sobre o Limite do Mar (2011), vídeo em que borda a areia de um solo costeiro, com linha de algodão cru sempre insuficiente, embora infinito. As relações de espelhamento, ancestralidade e conexão com o lugar também são investigados pela brasileira Aline Motta no vídeo (Outros) Fundamentos (2017-18).

A fotografia do venezuelano Claudio Perna, que exibe apenas a base e um eixo de um globo terrestre sem o volume que representa o planeta, frisa a artificialidade de uma geografia totalitária: a dita ciência foi impulsionada pelas necessidades políticas de domínio territorial do expansionismo europeu. Os relatos e as imagens dessas expedições predatórias são revisitados pela peruana Gilda Matilla e pelos colombianos Raimond Chaves e José Alejandro Restrepo em vídeos e instalações. Transpondo a esfera política para eventos contemporâneos, o brasileiro Mauro Restiffe apresenta duas fotografias da posse do presidente Lula pela primeira vez, em 2003, em Brasília, “contrastando a icônica geometria da arquitetura da cidade com a energia espontânea das multidões”, como defende o texto curatorial.

Noções de avanço tecnológico proporcionados pelo garimpo devastador são endereçados pela argentina Analia Saban, que reconstrói os circuitos de uma placa de vídeo com técnicas tradicionais platinas de tecelagem em linho, confrontando visualidades ancestrais com imagens digitais. Paralelamente, em noções espirituais quanto às formas puras e as simbologias atreladas ao ouro, o espanhol-brasileiro Daniel Steegmann Mangrané exibe “^” (2013), instalação que combina um projetor de slides e uma folha de ouro aplicada à parede e que possibilita a interação do espectador com a luz projetada e, por consequência, na imagem resultante na parede.

Em Sin Título (Superama II) (2005), o mexicano Gabriel Kuri tece em lã os dados de um cupom fiscal de uma compra de supermercado, revalorizando práticas artísticas apagadas e indagando sobre como as noções de consumo foram distorcidas pela produção industrial. O urgente impacto da pandemia da Covid-19 na interseção entre território e alimento é exposto pelas irmãs porto-riquenhas mulowayi iyaye nonó e mapenzi chibale nonó, que apresentam um filme em que o sustento ecológico no futuro é apenas possível pela recuperação de práticas ancestrais de povos afrodiaspóricos no Caribe.

Em relação às próprias correntes artísticas modernas e contemporâneas, o brasileiro Cildo Meireles expõe dois trabalhos. Malhas da Liberdade (1976-77) versa sobre a tradição geométrica da arte construtivista brasileira e sobre as dinâmicas de violência e encarceramento na ditadura militar no país. Já em Fio (1990-95), Meireles empilha dúzias de blocos de feno seco, envoltos por 100 metros de fio de ouro, amarrados em uma agulha de ouro de 18 quilates. O usual tom sarcástico do artista é combinado à inversão de noções produtivas e de valor em um cenário em que valeria a pena procurar a “agulha no palheiro”, já que ela é de ouro.

Em suas pinturas sobre papel, o venezuelano-ianomâmi Sheroanawë Hakihiiwë apresenta potentes expressões visuais que atritam operações canônicas da arte moderna europeia, levantando outros universos de significados e perspectivas criativas com formas austeras e conexões com sólidos arcabouços culturais indígenas. De forma transversal, a sobriedade formal é operada pelo brasileiro Iran do Espirito Santo, na pintura sobre parede En passant 10 (2023), composta por faixas verticais em tons de cinza e gradiente que sensibilizam a percepção espacial do espectador conforme a extensão da obra é percorrida.

A exposição demonstra que o refinamento, a complexidade, a profundidade e o pioneirismo da produção crítica, expográfica, literária, cultural e epistemológica latina não se restringe apenas à obra de arte isolada – comumente fetichizada e arrancada de seu contexto, como destaca a obra Mouse Pad (1999-2000) do venezuelano Luis Molina-Pantin. Novas matrizes para pensar a forma, o espaço, a história, a memória e a própria arte são geradoras de trabalhos precisos, de sofisticados sensos estéticos, poéticos e críticos, que versam sobre colonialismo, heranças culturais e redes de pertencimento – como também o fazem as brasileiras Anna Maria Maiolino, Rosângela Rennó e os brasileiros Paulo Nazareth e Thiago Rocha Pitta em suas obras na mostra.

Chosen Memories reverbera a inquietação da necessidade de escuta e de aprendizado com vozes ainda silenciadas, com propostas sustentáveis e revisionistas de leitura de mundo. Apresenta pontes com temas universais ao mesmo tempo que defende e incorpora suas especificidades. Ao fim, imagina-se qual o impacto teria essa produção feita às margens, com poucas oportunidades, mas já tão robusta, se pudesse calçar os espaçosos sapatos das realidades europeias privilegiadas.