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Cildo Meireles, no ateliê, sob detalhe da obra Amerikkka (1991-2013), que é exposta pela primeira vez no País na mostra Entrevendo, no Sesc Pompeia (Foto: Francisco Proner)
Postado em 02/10/2019 - 10:42
Residir tem um papel residual
Artista reflete sobre o tempo de decantação das ideias e a influência de viver em diversas cidades brasileiras sobre a sua obra
Paula Alzugaray

Geografias são disparadoras de ideias. Lugares, de passagem ou moradia, são definidores de poéticas. Cildo Meireles nasceu no Rio de Janeiro, em 1948, e deixou a cidade ainda menino, para viver em Goiânia, Belém e, depois, Brasília, com os pais. Quando voltou para o Rio, aos 20 anos, se viu diante de uma encruzilhada. “Nesse momento, pós-adolescência, eu estava tentando organizar minha cabeça, trabalhava com desenho e cheguei num cruzamento, quando já tinha começado a fazer os espaços virtuais”, diz ele à seLecT. O último desenho que realizou após um processo de trabalho obsessivo com desenhos foi justamente um cruzamento de ruas. Com os Espaços Virtuais: Cantos (1967-1968), em que começou a trabalhar com o modelo euclidiano de espaço (três planos de projeção), Cildo projetou sua pesquisa para outras dimensões. Se, para ele, cruzamentos de ruas são lugares de ação por excelência, aquela encruzilhada viria a conduzir sua obra para outros territórios simbólicos, raciocínios matemáticos, experimentações sensoriais e conceituações filosóficas. Nesta entrevista, realizada no ateliê de Botafogo, no Rio, quando Cildo preparava a instalação Amerikkka para a mostra Entrevendo, curadoria de Julia Rebouças e Diego Matos no Sesc Pompeia, em São Paulo, conversamos sobre a influência dos lugares habitados, vividos ou atravessados, em seus 50 anos de ação.

seLecT: Não parece constar em seu currículo a vivência de residências artísticas. Você já participou de alguma?
Cildo Meireles: Não. Por temperamento e convicção, sou um sem-teto em matéria de residências. Isso, de uma maneira ou de outra, me desgasta à beça.

Pelo fato de as residências terem virado uma espécie de compromisso institucional?
É, mas foram geradas obras incríveis. Talvez uma das primeiras residências tenha sido a de Herning, na Dinamarca, na virada dos anos 1950 pros 1960, onde o (Piero) Manzoni ficou vários meses produzindo alguns trabalhos, aquele dos 7,2 mil metros (Lines), Merde d’Artiste. Essa fábrica, Black Factory, abrigou o Manzoni por vários meses. O Socle du Monde está lá. Outro convidado a ficar um período trabalhando lá foi um alemão, em meados dos anos 1960. Era o marido da Eva Hesse, um escultor, não me lembro o nome dele (Tom Doyle). Uma vez, eu estava lendo uma espécie de depoimento dela num catálogo, em que ela contava isso. Dizia que teve momentos em que estava se sentindo sem função, sem proveito naquela situação, e aí o marido falou: “Tem uns fios, procura fazer alguma coisa com os fios”. Era uma indústria têxtil. E aí ela fez toda uma obra com fios. É engraçado, isso foi uma das primeiras residências artísticas. Mas, no meu caso, é uma coisa que eu sempre procurei contornar da melhor maneira possível. 

Há em sua biografia outras formas de se movimentar pela geografia do Brasil: períodos de moradia em diversas cidades, como Goiânia, Brasília, Belém, Paraty, Rio…
Em Goiânia devo ter passado por uns 12 ou 15 endereços diferentes.

… e muitas viagens pelo Brasil. Que papel tem esse residir e esse viajar na formulação de seus trabalhos?
Seguramente, tem um papel residual. Em outras palavras, vários trabalhos nasceram de algum tipo de memória de um determinado momento num determinado lugar. De supetão, posso me lembrar do Camelô, do Elemento Desaparecendo/ Elemento Desaparecido, da Documenta de 2002, o picolé de água. E vários outros. Belém. Seguramente, o Rio Oir tem uma referência na pororoca, aquela espécie de lenda da molecada, por causa do som.

Os trabalhos incorporam lembranças?
Em alguns momentos você tem um start, em que nada é definido em termos de escala, de forma, de material, nem de cor. A partir dali você tenta se aproximar do que foi esse relâmpago. Mas eu tenho trabalhos que nasceram prontos, porque sonhei com eles. Aliás o mais antigo dessa série de desenhos, Um Sanduíche Muito Branco, veio de um sonho. Eu estava com fome, era o fim da adolescência, 17 anos, lá em Brasília. Nesse sonho eu vi um sanduíche de pão francês e algodão. Dei uma dentada e acordei com uma sensação horrível. Isso é uma pré-história, uma coisa remota. Nesse campo, eu deixo as coisas virem. Mas num determinado momento, você é obrigado a assumir um procedimento lógico, construtivo, uma coisa de montagem, operacional mesmo.

A memória afetiva é quase sempre a origem da obra?
Seguramente. Essa é uma das importantes contribuições… porque, quando eu penso em arte brasileira, acho que ela começou a existir a partir de meados dos anos 1950, com o concretismo, o neoconcretismo… e um dos pilares e das singularidades dessa produção era expandir o campo de percepção com um máximo de sentido possível. Isso é uma preocupação em vários trabalhos, embora não seja uma obsessão, tampouco.

E que dimensão tem o trabalho artístico como campo de comentário político?
Isso acontece em vários dos meus trabalhos, mas não na totalidade, pelo contrário. Eu sempre tive ojeriza de arte puramente panfletária. Porque acho que há uma instância do objeto que tem de se garantir dentro da própria história do objeto de arte. Num sentido assim um pouco do Borges… de que, na verdade, você não tem vários escritores fazendo diferentes livros. Existe um único livro que está sendo escrito ao longo da história da literatura. Uma belíssima história. Em arte acontece um pouco disso também.

Por que é importante mostrar Missão, Missões – Como Construir Catedrais, um trabalho sobre a violência do nosso processo colonial, hoje, no contexto de um governo sem respeito pela questão indígena?
Porque a questão se agrava a cada dia. Em vez de caminhar para uma solução, a cada dia os povos indígenas vivem em situação de mais precariedade. Mas o critério principal lá (na mostra Entrevendo, no Sesc Pompeia) era mostrar trabalhos que não tivessem sido mostrados em São Paulo e, sobretudo, a possibilidade de ter junto um grupo de trabalhos. Outro trabalho que eu nunca mostrei aqui é o Amerikkka.

Amerikkka trabalha com uma matéria completamente contemporânea, remete às bancadas da bala de todo o continente americano…
Tem uma perversa sensualidade essa chuva de balas. E cai como luva pra esses idiotas todos, Trump, Bolsonaro… mas, na verdade, esse projeto é de 1991, foi mostrado em Madri, na Galeria Helga de Alvear, e depois em Serralves.

Você já realizou algum trabalho sobre a atual situação política brasileira?
Tem um que, se a gente conseguir aprontar, eu colocaria, mas está dependendo ainda de embalagem… Sempre tem, o Brasil é interminável nesse sentido. Se eu quisesse, uma vez por semana poderia me dedicar a um novo tema para um carimbo das Inserções. Porque assunto não falta. É um “show de besteiras”, como disse aquele general (Carlos Alberto Santos Cruz, em crítica ao governo Bolsonaro, após a sua demissão da Secretaria de Governo da Presidência da República). Tem muitas notas em caderninhos…

Cadernos de “desenhos portáteis”?
São desenhos de lugares temporários. São quase desenhos de hotel, em que você tem de se adaptar àquela pequena mesa. Quase desenhos de bolso. Antes, eu trabalhava meus desenhos nessa mesa (mesa grande do ateliê). Eu parei e agora os únicos desenhos são anotações breves em blocos. Notas para projetos. No começo dos anos 1990, eu basicamente sobrevivia do desenho. A partir dai, começou a haver um interesse por peças maiores, ou mesmo instalações.

E sobre a dimensão premonitória do desenho? Você já declarou que guarda qualquer coisa anotada, porque um dia aquela anotação pode gerar um novo trabalho.
Gosto de deixar os projetos decantarem. Tem trabalhos que, entre a primeira anotação e a primeira execução – Desvio para o Vermelho –, foram 17 anos. Em 2004, eu fiz no CAPC Bordeaux, na França, uma ocupação de um projeto concebido em 1969, em Paraty. Foram 35 anos entre o projeto e a execução. E tem projetos que faço logo em seguida, como Missão, Missões, que foi logo depois de uma viagem (a São Miguel das Missões, RS). Na saída, uma jornalista veio com as hóstias, não consagradas, que ela tinha surrupiado ali da gavetinha do padre e começou a distribuir dentro do ônibus em que estávamos voltando… e tinha um catálogo com imagens de ossos, que têm a ver com a própria economia lá da região. Foi o gado que se extraviou das missões que criou um perfil econômico não só pro Rio Grande do Sul, mas pros Pampas todos. Aí a coisa virou o Missões. Foi feita assim dentro de uma concepção quase matemática, no sentido de ser uma equação: poder material + poder espiritual = tragédia.

E como se deu a passagem do desenho para as séries Cantos e Volumes Virtuais: Cantos?
Comecei com esse desenho mais livre, que eu fazia sistematicamente desde 1963, que eu chamo de “desenhos africanos”, que são figurativos, expressionistas, em que a mão começa desenhando o que quer. Comecei por causa de uma exposição que vi no Instituto Central de Arte (ICA), na Universidade de Brasília, com o acervo da Universidade de Dacar, no Senegal. Eu tinha 15 anos e fiquei deslumbrado. Saí dessa exposição, fui comprar cartolina e nanquim pra começar a desenhar cotidianamente. Logo em seguida, entrei no Ateliê Livre da Fundação Cultural do Distrito Federal, que foi dirigida por Ferreira Gullar, e onde tinha esse professor que eu dou crédito na minha vida, que era o Felix Alejandro Barrenechea Avilez, que se instalou em Brasília. Ele é peruano, nasceu num pequeno Pueblo dos Andes, começou como assistente de pirotécnico, ou seja, fazendo pintura no céu, e com 17 anos foi pra Escola Nacional de Belas Artes, em Buenos Aires, se graduou, ganhou um prêmio, e com esse prêmio veio pra Belo Horizonte. Lá ele conheceu a esposa, tiveram 6, 8 filhos. O Barrenechea era uma pessoa incrível que eu sou muito grato, primeiro porque ele compartilhava as questões com que ele estava envolvido. Generoso. Ele não falava português. Com 80 e tantos anos, foi pros Estados Unidos e recomeçou do zero. Quando o reencontrei, estava fazendo o Volátil (instalação de 1980) na (Galerie) Lelong (em Nova York), em 1995. Na inauguração, ele apareceu. Também nunca aprendeu inglês. A língua original dele era o quéchua, a língua dos incas. Uma figura excepcional na minha vida, sempre foi. Eu tinha admiração, sobretudo, pela maneira de ele ensinar. Todo aluno dele, a primeira coisa era aprender a fazer cerâmica. Ele achava que cerâmica era o único material que resistiria a uma guerra nuclear e que todo artista deveria deixar uma versão em cerâmica. Um dos personagens cruciais na minha vida é, sem dúvida, o Barrenechea.

E você está deixando uma obra em cerâmica?
Não, eu fico mais com a Escolha de Sofia do que com a certeza da cerâmica.

E como os desenhos africanos viraram Cantos?
Depois da máscara africana, fui acrescentando personagens, cenas, comentários sobre situações, sobre o próprio golpe de 64, desenhos militarizados. Isso foi evoluindo para experiências no interior do desenho: pensar na possibilidade de um braço negativo. Ou de uma separação de planos virtuais, que se dá pela interrupção de linhas de dois desenhos diferentes. Fui evoluindo até o lugar da ação. Na polis, onde é o lugar da ação por excelência? É o cruzamento entre duas ruas. Então até junho de 68 eu fazia esses desenhos africanos e sobrevivia deles. Eles tinham a ver com música. Sobretudo, o conceito de ataque. Eles tinham o começo de indicação de questões que me interessavam. E aí então falei “vou me dedicar aos espaços virtuais”, com esse chamado módulo euclidiano de espaço, com os três planos de projeção com os quais você pode descrever qualquer objeto no espaço. A ideia era reduzir ao máximo. Fiz os dois Cantos, com espaços anedóticos, em que duas paredes escorregam e viram uma poça de tinta; depois passei para os Espaços Virtuais: Cantos, com ângulos e retas, uma série de 13 ou 14, até a Arte Física, Volumes Virtuais, Ocupações, Inserções… Quando voltei de Nova York em 1973, achei que foi uma grande besteira ter parado de desenhar.

Quais as questões envolvidas na série Arte Física?
Arte Física trabalha com o paradoxo, que é uma das questões que me interessam: afetar uma macroescala, a partir de um início muito pequeno. Com um mínimo de ação, afetar. Um exemplo é o trabalho do Pico da Neblina: retirar 1 centímetro e mudar a altura de uma montanha.

No trabalho do Pico da Neblina [Arte Física – Mutações Geográficas: Fronteira Vertical (Yaripo, 1969)] você promove uma ação física real, mas em outros, como aquele em que propõe “estender uma corda pelos cimos dos montes que contornam nosso campo de visão”, você parece cavar um espaço inverossímil no real. Uma terceira margem?
Em alguns momentos, sim. Isso é, na verdade, o que mais interessa. Tem a ver com uma questão que começou a ser levantada no Brasil. Estou falando da imaterialidade. Acho que começa, sobretudo, na teoria do não objeto de Ferreira Gullar, final de 1959. Depois tem os americanos todos aí, Lucy Lippard, a desmaterialização do objeto de arte (1968). Mas acho que esse texto é posterior ao texto-base do neoconcretismo. As Inserções (Inserções em Circuitos Ideológicos) nasceram com isso. Primeiro, como uma espécie de desafio de tentar fazer o inverso do readymade – em que você vinha do universo industrial pro museu, pra exposição. Dessacralizando um produto industrial, você o ressacralizava ao colocá-lo no interior da arte. As Inserções tentam trabalhar o contrário disso: um indivíduo, uma pessoa, por meio de um pequeno ato, voltar para o mundo dessa macroestrutura, seja industrial, no caso da Coca-Cola, seja institucional, no caso do dinheiro. Eu gosto desse paradoxo, esse tipo de tensão no interior do objeto… que, na verdade, só existe no gerúndio, enquanto aquele procedimento sugerido estiver sendo praticado.