icon-plus
Postado em 28/04/2014 - 5:15
Revolução viral
Ivana Bentes

Professora e pesquisadora da Escola de Comunicação da UFRJ sugere que as jornadas de junho foram apenas o começo de algo maior

Ivana_body

Legenda: As manifestações de 2013 trouxeram à tona o fenômeno das mídias das ruas, um poderoso contradiscurso, ativista, que toma partido e informa de dentro. A Mídia NINJA é emblemática desse contexto. A foto acima, produzida por seus integrantes, foi incorporada ao acervo do MAM-SP (foto: Mídia Ninja / Coleção MAM)

As manifestações no Brasil fazem parte de uma onda de protestos que vem se espraiando de forma virótica e viral, um novo ciclo de lutas globais, com características e contextos distintos. Uma mobilização geral que funciona como laboratório de acontecimentos partilhados em tempo real e que produzem um presente urgente.

Ela tem impacto cognitivo-afetivo, que é gerado pela rua amplificada pelas transmissões ao vivo durante centenas de horas ininterruptas e com milhões de visualizações. Uma “radiação” política que potencializa e cria acontecimentos, como vimos nas manifestações no Brasil. Foram utilizados vídeos, posts, associados a hashtags, tweets e memes online, para criar ondas de intensa participação em que a experiência de tempo e de espaço, a partilha do sensível, a intensidade da comoção e engajamento construídos num complexo sistema de espelhamento e potencialização entre as redes e as ruas insurgentes.

Ninguém poderia imaginar que, em 2013, pautas como a crítica aos megaeventos, o questionamento dos investimentos para realizar uma Copa do Mundo no Brasil, a ampla rejeição da polícia e seus métodos repressivos, a crítica radical da mídia e das corporações que manipulam notícias e criminalizam as lutas tomariam as ruas. Pautas e questionamentos que saíram da invisibilidade e ganharam grande repercussão nas redes sociais e na mídia.

Vimos ainda a emergência de novos sujeitos políticos no Brasil: os desorganizados, a chamada classe C, os novos movimentos urbanos, rolezinhos, assembleias, ocupações e movimentos de minorias que colocam todo um sistema de valores em crise, expondo o limite das instituições como a Mídia, Partidos, Estado.

Ficaram explícitos os limites do pensamento conservador e as limitações do próprio campo da esquerda no Brasil. O medo das ruas levou a erros grosseiros de análise à direita e à esquerda: disseram que era Golpe da direita para desestabilizar o governo, conspiração comunista, interferência de grupos internacionais, golpe da CIA, importação de estrangeirismos como os Black Blocs, como se o povo brasileiro fosse incapaz de pensar e protestar sem ser manipulado e teleguiado. Ou como se não pudesse perceber as tentativas de apropriação dos protestos e a disputa pelos seus sentidos.

Com a criminalização das manifestações e a brutal repressão policial, apoiada em grande parte pela mídia, a comunicação virou pauta das ruas, com protestos na frente de emissoras de televisão e em frente à sede de corporações de mídia e hostilidade de manifestantes aos seus jornalistas. Foi uma reação ao sensacionalismo e ao eterno retorno do medo fabricado e vocalizado pelos meios de comunicação tradicional. Já vimos essa história da construção de inimigos antes no Brasil: os comunistas, os subversivos, os maconheiros e, agora, os Black Blocs, que com outros manifestantes foram tomados, primeiro, como baderneiros, mascarados, vândalos e, finalmente, terroristas! As manifestações passaram de ato cívico a uma ameaça à nossa jovem democracia, de forma redutora. A violência, subproduto dos enfrentamentos foi deslocada como “pauta” principal da mídia.

Mas poucas foram as reflexões que buscaram entender que “exprimir o grito”, em ações diretas de confronto, tanto quanto tomar posse da palavra ou buscar diálogos institucionais, é o modo de desestabilizar a partilha do sensível e produzir um deslocamento dos desejos e constituir o sujeito político multidão. Trata-se de política como comoção, catarse, mas também negociação e mediação.

Os Black Blocs, mas não só eles, todos os que sofrem o poder no corpo (jovens negros das favelas, população de rua e, agora, ativistas e midialivristas) colocam de forma muito explícita uma questão decisiva para todos nós: o monopólio da violência pelo Estado. E toda a pauta política que isso implica: do fim das mortes nas favelas até a total desmilitarização da polícia e a neutralização do poder de morte do Estado. Biopoder, poder sobre a vida, escancarado e colocado em xeque.

Certamente que a violência não pode ser a estratégia dos manifestantes, mas o nível de manipulação dos fatos passa pela manipulação da comoção, o que ocorreu depois da morte acidental do cinegrafista Santiago Andrade, da TV Bandeirante, para se criminalizar e desqualificar os movimentos urbanos e sujeitos políticos que mal emergiram e já se busca abortá-los.

Enquanto os poderes se reorganizam para um contra-ataque (lei antiterrorista, recrudescimento dos fichamentos e das prisões, artes marciais e Robocops nas ruas), a guerrilha nas redes vai reinventando formas de fazer multidão (assembleias nas ruas e praças, ocupações, rolezinhos e protestos nos shoppings), questionamento em torno da realização da Copa do Mundo, um espraiamento da política por franjas inimagináveis, por meio de narrativas colaborativas que, mais que difundir as lutas, são a própria luta: a insurgência em fluxo.

*Coluna móvel publicada originalmente na edição #17