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Ilustração digital do edifício Ecotone, complexo de 82 mil metros quadrados na Grande Paris
Postado em 08/09/2020 - 2:31
Salto estético
Dois dos mais ambiciosos projetos do escritório Tryptique reduzem ao mínimo o uso de concreto, substituindo-o pela tecnomadeira

Se fosse um país, a indústria do cimento seria a terceira maior fonte de poluição do planeta. Só perde para a China e os Estados Unidos no ranking de emissão de dióxido de carbono. O plástico tornou-se o grande vilão da mudança climática, mas é peixe pequeno quando comparado ao concreto. Enquanto a produção de plástico nos últimos 60 anos acumula 8 bilhões de toneladas, a indústria do cimento bate essa marca a cada dois anos. Concreto é o segundo material mais consumido na Terra, só inferior ao uso da água, devastando rios, morros e montanhas de pedra. O jornal inglês The Guardian decretou em artigo, no ano passado, que o concreto “é o mais destrutivo material na Terra”. Exagero?
O Tryptique, um dos maiores escritores de arquitetura do País, com 120 arquitetos nos escritórios de São Paulo e Paris, quer dar o seu pitaco nesse debate. Dois dos mais ambiciosos projetos do escritório visam reduzir o concreto ao mínimo (as fundações, por causa do contato com terra e água). Todo o resto será feito com tecnomadeira. Um deles é na Grande Paris, um complexo de 82 mil metros quadrados chamado Ecotone; o outro, um edifício de 13 andares, será erguido na Vila Madalena, em São Paulo, em 2022. É claro que não é um adeus ao concreto, mas pode ser o começo do fim.
Esqueça a madeira tal qual você a conhece. O novo material é um aglomerado de placas, uma colada à outra em sentido transversal para aumentar a resistência. A versão mais conhecida é chamada CLT (Cross Laminated Timber ou laminado de madeira cruzada), tecnologia criada no início dos anos 1990 na Áustria e na Alemanha.
“Madeira tecnológica é uma nova matriz para a arquitetura, assim como foram o tijolo, o concreto e a estrutura metálica no passado”, diz Carolina Bueno, uma das sócias do Tryptique juntamente com os franceses Grégory Bousquet, Guillaume Sibaud e Olivier Raffaelli. Todos os materiais serão usados conjuntamente, mas a madeira tecnológica vai substituir o concreto numa série de funções, como em lajes e vigas. “É uma nova fase de industrialização da construção, a nossa terceira  revolução, porque vai juntar tecnologia digital e construção”, diz ela à seLecT.

Ilustração digital do interior do edifício Ecotone


Grandes respostas para a pandemia
Carolina acredita que o xeque-mate causado pela pandemia do novo coronavírus, com os questionamentos em série sobre os desmandos ambientais, vai acelerar o uso da madeira tecnológica. “A madeira traz uma mensagem muito forte neste momento de pandemia. A pegada de carbono do concreto é insustentável.” Ela acha que chegou a hora de grandes respostas, já que as pequenas serão sufocadas pelo tsunami do vírus. “As pequenas respostas já não são suficientes, porque passamos dos limites.”
Apenas 1 metro cúbico de matéria reflorestada é capaz de absorver 1 tonelada de CO2. Já 1 metro cúbico de concreto emite 400 quilos de CO2 na atmosfera. O novo material não oferece risco de desmatamento, já que as placas são feitas com madeira plantada (pínus e eucalipto). A empresa que vai fornecer o material para o Tryptique diz que suas florestas produzem madeira suficiente para levantar um prédio de dez andares a cada 40 horas.
A comparação com a ruptura provocada pela internet não é descabida. O uso de tecnomadeira muda totalmente o método de construção atual, que Carolina classifica de “pré-histórico”, por causa de uma lista de defeitos que todo mundo conhece de cor: desperdício de material e de energia, improvisos e desorganização nos canteiros de obras, mão de obra desqualificada e necessidade de força física, além do desastre ambiental que deixa como rastro. Se não fossem as razões ecológicas para a mudança, há um argumento irrefutável para os empreendedores: joga-se dinheiro pela janela.
Com madeira tecnológica, tudo muda. As peças têm de chegar milimetricamente calculadas na obra. Não há como consertar erros de projeto. As placas são numeradas na ordem que serão encaixadas por guindastes e parafusadas, de baixo para cima, como se fossem um castelo de cartas. Escadas e elevadores são construídos conforme o edifício vai subindo. Inverte-se a lógica de que uma obra gasta 30% do tempo no projeto e 70% na execução. Na tecnomadeira, o detalhamento do projeto é que exige praticamente três quartos do tempo, às vezes mais.
Um prédio de dez andares é erguido em um mês e uma casa de 60 metros quadrados de um projeto social fica pronta em três dias, segundo o arquiteto Marcelo Aflalo, que preside o núcleo de madeira do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), da USP, onde ele também dá aulas de pós-graduação sobre madeira. “A madeira vai se impor por causa do tempo de produção. Ninguém vai resistir ao fato de você entregar um prédio em um mês. Faz-se um prédio de dez andares com apenas quatro funcionários na obra”, diz Aflalo

Ilustração digital do edifício que será construído com CLT na Vila Madalena, São Paulo, em 2022


Contra a lógica das commodities
O Brasil tinha tudo para dar errado nessa área, segundo Aflalo. Impera no mercado de madeira a lógica das commodities de um país extrativista, exatamente como acontece com a soja e o ferro. O Brasil exporta matéria-prima bruta, em vez de beneficiá-la para agregar valor. Para piorar, o setor de construção no País não investe em tecnologia. Há ainda uma briga de foice no mercado, segundo o arquiteto: “O setor de cimento e aço faz uma guerrilha contra a madeira tecnológica”.
A fresta para inovação ocorre na área de plantio de florestas, sobretudo para a produção de celulose, segmento em que o País está entre os mais avançados no mundo. É desse setor que virá a principal força aliada do Tryptique. A empresa Amata, que tem quatro polos de plantio de madeira no Brasil, vai implantar uma fábrica de bom porte para produzir madeira tecnológica, num investimento nada desprezível para épocas de recessão: R$ 100 milhões. A planta, que terá tecnologia da empresa austríaca KLH e deverá ficar no Paraná ou Santa Catarina, vai produzir 60 mil metros cúbicos por ano do que a Amata chama de “madeira engenheirada”, um termo um tanto diferente, visto que é a tradução literal de engineering wood.
“A madeira tecnológica faz parte de uma macrotendência mundial que independe da conjuntura local”, diz a também arquiteta Ana Belizário, gerente de projetos da Amata, que tem quatro polos de produção de madeira no País. A empresa é praticamente sócia no prédio que será levantado na paulistana Vila Madalena e usará a obra como vitrine dos seus produtos.

No Brasil, o primeiro prédio com madeira engenheirada fornecida pela Amata tem previsão de lançamento no fim do ano


Memória estética do concreto
Se o ganho ambiental é óbvio com a tecnomadeira, as mudanças estéticas ainda engatinham. Os novos projetos trazem a memória da estética do concreto e do aço, assim como os primeiros arranha-céus pareciam casas empilhadas. Outro cacoete que a madeira preservou é a competição pelo prédio mais alto, tal qual ocorria com os primeiros edifícios de concreto e aço. O edifício mais alto de madeira tecnológica fica ao lado de Oslo, na Noruega: tem 85 metros de altura, distribuídos em 18 andares. A Dinamarca inaugura em 2023 um prédio de madeira de 34 andares. Na Europa, Canadá e Japão, os ensaios mostram que o novo material resiste mais ao fogo (1.200 graus Celsius durante duas horas de combustão ante 1.100 graus do aço) e a abalos sísmicos. Cada placa e cada viga são planejadas conforme as especificações do projeto.
“A nova matriz tecnológica vai trazer um resultado estético totalmente novo. Certa repetição dos projetos de concreto é normal e isso faz parte do processo de aprendizado”, afirma Carolina Bueno, do Tryptique. O escritório nasceu com preocupações ambientais e já fez um projeto importante de madeira tecnológica na França em 2012 (o Instituto Nacional de Propriedade Industrial, construído em Courbevoie).
O salto estético, porém, parece reservado aos novos projetos com madeira, o Ecotone e o Edifício Amata. Ambos rompem com a ideia de verticalidade que acompanha o modernismo. Os dois casos parecem muito mais um morro com volumes distribuídos irregularmente do que uma torre. O paisagismo é criado juntamente com o edifício, não é mais um elemento externo ou decorativo. O mais importante, talvez, seja a permeabilidade do espaço privado para o público, como acontece num dos melhores projetos do modernismo de São Paulo, o Conjunto Nacional, na Avenida Paulista.
O jornalista Raul Juste Lores, autor do livro São Paulo nas Alturas, diz que a preocupação do Tryptique com madeira mostra que o escritório está sintonizado com novos materiais e linguagens, diferentemente do que ocorre com a arquitetura brasileira, repetitiva há décadas, segundo ele. Lores afirma que o Tryptique tornou-se um dos maiores escritórios brasileiros porque vem de uma cultura diferente da local: “Eles têm uma cultura empreendedora que ainda não é ensinada por aqui, o que lhes dá uma boa vantagem. Caçar clientes, cavar encomendas, identificar problemas na cidade e ir atrás de mecenas e patrocinadores, como fizeram tanto no Minhocão quanto no Arouche”, diz Lores à seLecT.
Isso aparece, também segundo o jornalista, na relação com o mercado imobiliário, tanto em prédios novos quanto em retrofit – tendência na arquitetura e no design que surgiu na Europa com o fim de renovar edifícios antigos inutilizados, mantendo as características intrínsecas da obra. “Eles são bons de marketing e isso é um elogio: o arquiteto que só fala a linguagem dos outros arquitetos, que só choraminga o desinteresse do poder publico e do mercado, que não sabe se comunicar, dificilmente ocupará espaços na mídia.”