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Vista da exposição Rahj al-ģār tirada durante montagem [Fotos: Yuri Sugai/ celeste]
Postado em 21/03/2025 - 7:01
Sangue como tragédia, tinta como farsa
Individual de Dora Longo Bahia na Vermelho abraça a cenografia, mas rejeita o espetáculo

Realgar é um mineral usado há milênios, com variações de um tom de vermelho alaranjado até uma pedra muito similar ao rubi. Em sua individual na Galeria Vermelho, em São Paulo, a artista Dora Longo Bahia usa seu nome original: Rahj al-ġār, que em árabe significa “pó da mina”. No nome da exposição, ela referencia um conhecimento cultural e técnico simultaneamente embrenhado e apagado do latim; mas também a história da pintura, que usou o pigmento até o século 18, e da técnica, que usou o mineral tóxico e carcinogênico em fogos de artifício e como veneno para ratos.

O procedimento referencial não é gratuito: ele está nas pinturas exibidas, nas ideias e procedimentos, em uma forma de trabalho. A artista toma de suas referências maiores na história da arte nomes, procedimentos e conceitos abertamente. Em suas pinturas, copia traços de Cy Tombly, Mickeys de desenhos de Paul McCarthy, insere personagens da Turma da Mônica e iconografia de quadrinhos, desenha retratos de personalidades e eventos históricos.

Digo que a artista copia, ou plagia, para evitar o termo tão comumente utilizado na arte da “apropriação” ou “reapropriação”, que ela mesma rejeita. Longo Bahia lembra que apropriação necessariamente aceita a existência de algo como propriedade – privada, ainda que intelectual. A ideia de cópia acaba sendo mais ampla enquanto procedimento: ela diz que se você não tem um quadro que queria ter, nada te impede de copiá-lo. Não será igual, obviamente (aqui estamos falando de pintura e não de uma teoria de reprodutibilidade técnica), mas manter essa possibilidade irrestrita é uma forma de desprivatização cultural e de manter vivas as próprias obras.

Não existe uma necessidade de originalidade, mas sim de radicalidade, na exposição. Diferenciar uma coisa da outra reabre portas que o desejo de ineditismo fechou e faz da história não um sinônimo de passado, mas de movimento. Da Internacional Situacionista e de seu membro e fundador do CoBrA, Asger Jorn, ela toma, respectivamente, as táticas de desvio e de desfiguração – na entrada da galeria, uma parede leva a citação de breve ensaio de Jorn:

A PINTURA ACABOU.
É MELHOR DAR O GOLPE DE MISERICÓRDIA.
DESVIEM.
VIDA LONGA À PINTURA.
(Peinture Détournée, Asger Jorn, 1959)

Retratos de Jacqueline de Jong e Michelè Bernstein sobre desenhos de infância da artista, parte da série Minas (trabalho em andamento), 1964-2025 [Foto: Yuri Sugai/ celeste]
O desvio (détournement) que Jorn pede aqui é uma tática de usar imagens e objetos do espetáculo para romper com seu “monopólio da aparência” – uma “arma na batalha das representações”, como explica Gabriel Zacarias em sua coluna móvel para a celeste #5 – desvio. Assim como Longo Bahia, Asger Jorn fez sua série de desfigurações pintando sobre reproduções de imagens existentes – desviando-as. A própria artista já fez o mesmo, copiando pinturas célebres da história da arte e as desviando na série Farsa (2013-14). Mas aqui, desfigura suas próprias pinturas anteriores: cabeças de Cascão e Cebolinha sobre imagens da série Os 7 Pecados Capitais (1991), ou uma furiosa cabeça com olhos de mangá sobre um trabalho que fez na faculdade.

Dora Longo Bahia e Keila Alaver pintando a fachada da Galeria Vermelho [Fotos: Yuri Sugai/ celeste]
Vandalismo estratégico
Das duas possíveis traduções da série de intervenções de Jorn – modificação e desfiguração –, ela escolhe a segunda. Apesar de remeter à violência, o termo para o artista dinamarquês está, diz a artista, mais para a mudança do que para a destruição. E, nesse sentido, suas sobreposições não sinalizam uma vontade de autodestruição, mas a constatação de que o eu do passado e o do presente não compõem necessariamente igualdade entre si – e que os momentos não são os mesmos. Desfigurar é o golpe de misericórdia, a atualização necessária para que a obra esteja viva e relevante, e não sacralizada e estanque. Devolvendo isso para a artista, o golpe de misericórdia é na própria ideia de “eu”.

Não à toa, o texto O Labirinto de Dora, de Gabriel Zimbardi para a exposição, fala de “vandalismo estratégico”. Olhando a fachada da Vermelho enquanto conversávamos, a artista lembra do termo “atropelar”, usado no pixo e no grafite com uma conotação negativa de desrespeitar o trabalho anterior. A artista prefere vandalizar no sentido de “desfigurar” e não de “atropelar”, porque existe um ethos individualista a ser rompido pela cópia e pelo desvio. Não há atropelamento do trabalho, ou da existência, do Outro pois os limites entre Outro e Eu estão em diluição. Ao desviar outras obras e desfigurar seus trabalhos passados, ela dilui a autoria dos demais artistas, mas também a sua própria autoria. Em última instância, suas práticas apontam para a necessidade de um fazer e pensar coletivo.

Vista tirada durante montagem [Fotos: Yuri Sugai/ celeste]
E então fica a questão de como pensar todas essas práticas, sobretudo táticas políticas e estratégias disruptivas do status quo, através da arte. Não apenas da arte – da pintura. A cópia, a desierarquização entre autores, ou entre imagem e texto, a diluição do autor, aparecem como formas. Entramos em uma sala toda coberta por plástico, remetendo a uma cena hollywoodiana. Durante a montagem, ainda não há som, mas haverá: leituras das legendas e das falas dos vídeos estarão projetadas sonoramente pela sala de forma concomitante, gerando a cacofonia que, em minha visita, na véspera da abertura da exposição, em 21/3, estava ausente. Sem som, parecia faltar aquilo que materialmente preencheria o espaço. Não só tinta espirrada, já seca, mas também cacofonia como uma forma de materialização do som. Em última instância, algo difícil de ignorar, algo que penetra o visitante de maneira invasiva, precisa se projetar pelo espaço junto com as imagens, envolver o espectador como cúmplice ou vítima da cena.

Mas é claro que não é possível falar tanto sobre arte, e tão politicamente, sem reconhecer o que fala e de onde. Talvez essa seja a tática e a característica formais mais fortes da montagem do trabalho da artista para Rahj al-ġār. A carnificina doméstica e o serial killer empunhando a motosserra, Dora Longo Bahia lembra, não existem. A artista me explica a necessidade da farsa: a tragédia já tem muito tempo. Lembrar que não é sangue, mas sim tinta, nos lembra também que o sangue real não está escorrendo naquela sala, nem naquelas obras. Os vídeos exibidos nas TVs da sala nos lembram que sangue escorre, agora mesmo, na Palestina.

A PINTURA ACABOU. É MELHOR DAR O GOLPE DE MISERICÓRDIA. DESVIEM. VIDA LONGA À PINTURA. ASGER JORN, 1959