Realgar é um mineral usado há milênios, com variações de um tom de vermelho alaranjado até uma pedra muito similar ao rubi. Em sua individual na Galeria Vermelho, em São Paulo, a artista Dora Longo Bahia usa seu nome original: Rahj al-ġār, que em árabe significa “pó da mina”. No nome da exposição, ela referencia um conhecimento cultural e técnico simultaneamente embrenhado e apagado do latim; mas também a história da pintura, que usou o pigmento até o século 18, e da técnica, que usou o mineral tóxico e carcinogênico em fogos de artifício e como veneno para ratos.
O procedimento referencial não é gratuito: ele está nas pinturas exibidas, nas ideias e procedimentos, em uma forma de trabalho. A artista toma de suas referências maiores na história da arte nomes, procedimentos e conceitos abertamente. Em suas pinturas, copia traços de Cy Tombly, Mickeys de desenhos de Paul McCarthy, insere personagens da Turma da Mônica e iconografia de quadrinhos, desenha retratos de personalidades e eventos históricos.
Digo que a artista copia, ou plagia, para evitar o termo tão comumente utilizado na arte da “apropriação” ou “reapropriação”, que ela mesma rejeita. Longo Bahia lembra que apropriação necessariamente aceita a existência de algo como propriedade – privada, ainda que intelectual. A ideia de cópia acaba sendo mais ampla enquanto procedimento: ela diz que se você não tem um quadro que queria ter, nada te impede de copiá-lo. Não será igual, obviamente (aqui estamos falando de pintura e não de uma teoria de reprodutibilidade técnica), mas manter essa possibilidade irrestrita é uma forma de desprivatização cultural e de manter vivas as próprias obras.
Não existe uma necessidade de originalidade, mas sim de radicalidade, na exposição. Diferenciar uma coisa da outra reabre portas que o desejo de ineditismo fechou e faz da história não um sinônimo de passado, mas de movimento. Da Internacional Situacionista e de seu membro e fundador do CoBrA, Asger Jorn, ela toma, respectivamente, as táticas de desvio e de desfiguração – na entrada da galeria, uma parede leva a citação de breve ensaio de Jorn:
A PINTURA ACABOU.
É MELHOR DAR O GOLPE DE MISERICÓRDIA.
DESVIEM.
VIDA LONGA À PINTURA.
(Peinture Détournée, Asger Jorn, 1959)
Das duas possíveis traduções da série de intervenções de Jorn – modificação e desfiguração –, ela escolhe a segunda. Apesar de remeter à violência, o termo para o artista dinamarquês está, diz a artista, mais para a mudança do que para a destruição. E, nesse sentido, suas sobreposições não sinalizam uma vontade de autodestruição, mas a constatação de que o eu do passado e o do presente não compõem necessariamente igualdade entre si – e que os momentos não são os mesmos. Desfigurar é o golpe de misericórdia, a atualização necessária para que a obra esteja viva e relevante, e não sacralizada e estanque. Devolvendo isso para a artista, o golpe de misericórdia é na própria ideia de “eu”.
Não à toa, o texto O Labirinto de Dora, de Gabriel Zimbardi para a exposição, fala de “vandalismo estratégico”. Olhando a fachada da Vermelho enquanto conversávamos, a artista lembra do termo “atropelar”, usado no pixo e no grafite com uma conotação negativa de desrespeitar o trabalho anterior. A artista prefere vandalizar no sentido de “desfigurar” e não de “atropelar”, porque existe um ethos individualista a ser rompido pela cópia e pelo desvio. Não há atropelamento do trabalho, ou da existência, do Outro pois os limites entre Outro e Eu estão em diluição. Ao desviar outras obras e desfigurar seus trabalhos passados, ela dilui a autoria dos demais artistas, mas também a sua própria autoria. Em última instância, suas práticas apontam para a necessidade de um fazer e pensar coletivo.
Mas é claro que não é possível falar tanto sobre arte, e tão politicamente, sem reconhecer o que fala e de onde. Talvez essa seja a tática e a característica formais mais fortes da montagem do trabalho da artista para Rahj al-ġār. A carnificina doméstica e o serial killer empunhando a motosserra, Dora Longo Bahia lembra, não existem. A artista me explica a necessidade da farsa: a tragédia já tem muito tempo. Lembrar que não é sangue, mas sim tinta, nos lembra também que o sangue real não está escorrendo naquela sala, nem naquelas obras. Os vídeos exibidos nas TVs da sala nos lembram que sangue escorre, agora mesmo, na Palestina.