
A frase-título vem do poema Canary, do livro Grace Notes, de Rita Dove (1989). Aqui, ela tem o sentido de desenhar dois movimentos conceituais distintos, porém contingentes um ao outro: o primeiro é um diagnóstico do mundo – leitura dinâmica do mapa de intensidades que enseja e conjura, quer a memória, quer o futuro da guerra micropolítica em curso; o segundo (sê um mistério!) encena uma posição inteiramente outra, e ainda assim predicada no primeiro movimento. Tornar-se um mistério aparece aqui como programa político dissidente, isto é, como forma de insubmissão às formas sociais de não ser livre.
Este é um ensaio visual voltado à produção de artistas trans, feito por uma pessoa trans, como afirmação de uma posicionalidade situada e de uma perspectiva dinamizada pelas formas particulares de socialidade e acesso ao mundo que caracterizam as diversas posições trans. Isso tem como efeito primeiro uma recusa à lógica de objetificação que dá sentido a muitas das produções acadêmicas, artísticas e midiáticas sobre transgeneridade; e tem, portanto, um efeito resistente à tematização desimplicada de nossas vidas.
O diagnóstico que aqui se desenha, nesse sentido, inverte a lógica do diagnóstico médico que determina a relação dos corpos trans com o aparato científico patologizador. Produzido desde a posição de uma bicha trans não binária, em constelação com outras cinco pessoas trans artistas – Miro Spinelli (BR), Ana Giselle (BR), Lia Garcia (MEX), Pêdra Costa (BR) e Odete (PT) –, o tema deste ensaio não é a transgeneridade, mas o mundo que a inscreve como subalternidade. Assim, ao enunciar a frase “se não puder ser livre”, quero tornar evidente que “as formas de não ser livre”, embora afetem direta e arbitrariamente as vidas trans, não são propriedades delas, mas do mundo. Incluindo, neste mapa, os sistemas de arte e seus modos de reproduzir e desviar das gramáticas sociais normativas.
O primeiro trabalho que aparece aqui desdobra-se do processo iniciado pelo artista Miro Spinelli, Gordura Trans. Trata-se de um registro da penúltima edição dessa performance, no marco da Frestas – Trienal de Artes (Sorocaba-SP, 2017). Na ocasião, o artista convidou três outros performers situados na interseção entre gordura e desobediência de gênero para o que teria sido a maior instância de seu trabalho, com quase 1 tonelada de gordura, 12 horas de performance e quatro corpos em ação simultânea. Ocorre que, com o desenrolar da performance, o cheiro da gordura tornou-se um problema sensorial para parte dos visitantes e funcionários da instituição, a ponto de o trabalho ter de ser encerrado a meio caminho, no segundo dia da ação que estava prevista para durar três dias, e permanecer ainda, na materialidade dos resíduos de gordura, ao longo de toda a exposição. As imagens que aparecem aqui como registro exibem o processo de limpeza, e dão a ver, em vez da performance dos artistas (cuja imagem tem sido explorada de diversas formas), a performance da instituição.

de_colon_isation. Pêdra Costa. (Foto: Cortesia do Artista)
Em seguida aparece a contribuição de Pêdra Costa, artista brasileira radicada em Viena, que traz aqui registros de seu processo de investigação atual denominado de_colon_isation. Tendo trabalhado as políticas do cu ao longo de quase toda sua carreira, a série em questão propõe um deslocamento do cu ao “cólon”. Tal trajetória, auxiliada por uma câmera-dildo, articula poeticamente a relação entre colonização e entranha, e ao mesmo tempo, graças à inscrição de um trecho do seu manifesto O Cu do Sul, estuda os limites da tradição antropofágica da produção de subjetividade à brasileira. No intestino, Pêdra busca os resíduos digestivos resultantes da devoração de um mau banquete, e produz, de quebra, uma imagem do próprio corpo que desafia as expectativas de inteligibilidade e transparência impostas pelo regime óptico do fundamentalismo cisgênero.
Outras corporalidades
A obra de Pêdra marca a transição entre o movimento diagnóstico e o movimento fugitivo, na medida em que parte de uma investigação do poder colonial para construir uma imagem abstrata do próprio corpo em luta contra as formas de não ser livre que definem a relação entre corpo e colonialidade. A seguir, Lia Garcia aparece através dos desenhos e relatos de dois sujeitos com que interage em sua pesquisa acerca das lendas da sereia de Xochimilco, distrito da Cidade do México. A sereia é uma das figuras do feminino em torno das quais o trabalho de Lia se move, e enseja uma mística própria, a partir dos múltiplos contextos nos quais emerge como entidade e força imaginativa. Em sua investigação, a artista visita Xochimilco, interage com os homens que navegam nas balsas típicas do local, pedindo-lhes que escrevam e desenhem a lenda da sereia, enquanto nada nas águas com sua calda e permite que seu corpo integre o arcabouço fantástico das lendas da região.
Se a fantasia é uma forma de mistério, e o trabalho de Lia Garcia abre espaço no imaginário popular mexicano para a existência de outras corporalidades não limitadas aos códigos do fundamentalismo cisgênero, também o que Ana Giselle chama de “close dje anônima”, por apostar na produção de um corpo opaco, que resiste à captura dos olhares normativos na medida em que desaparece pelos escuros para depois reaparecer em sua luminosidade negra, se configura como uma estratégia fugitiva, um passo fora do domínio do inteligível em favor da liberdade de brilhar outras formas de presença. O anonimato, aqui, não deve ser lido na chave reativa de um “retorno ao armário”, dado o caráter confrontacional das performances e movimentos de vida de Ana; é, isto sim, uma forma de esconder-se sob a luz dos holofotes e de preservar a própria força e singularidade, em face do consumo intensivo de sua imagem pelos circuitos por que passa.

Por fim, Odete – artista convidada a encerrar este breve recorte curatorial. Misturando técnicas digitais de colagem e distorção com desenhos feitos à mão, esta obra articula momentos de textualidade literal (“deixe o medo fora da sua vida”) com modos de composição abstratos, em que disformidades, símbolos e manchas interagem num só exercício de autoarticulação. Como um corpo desbordante de qualquer formação que repita a obra deste mundo, embora ainda marcado pela interação sempre já policiada pelo mundo como o conhecemos. A rave no quartel a zero euros está na ponta do movimento bifurcado deste ensaio, como política do mistério e convite a falar em línguas criptografadas contra a tradução controladora da norma.
Este projeto curatorial, à sua maneira, mesmo quando parece explicar – e talvez aí especialmente –, intenta também fugir pelo mistério e confundir ao poder o mapa das rotas, projetando a mancha como política de visibilidade. O mistério como plano de composição das forças e de decomposição do mundo como nos foi dado conhecer.
Se não pudermos ser livres, mergulharemos no abstrato e fecundaremos os chãos mais improváveis com nossas mitopoéticas. Seremos mistério! E produziremos nossas próprias facas com que cortar o horizonte para abrir nele uma fenda por onde possam passar todas as entidades, corpos, seres, vidas e forças que, como Kerollayne Rodrigues profetizou recentemente, “nascem para morrer, mas não morrem”.
