O que estamos vivendo hoje na arte afro-brasileira e indígena brasileira contemporânea é o que será visto em anos como um chamado “boom” momentâneo, um “movimento da arte”, ou uma efetiva reescrita contínua das histórias das artes brasileiras?
Será que o que estamos produzindo hoje com diversas exposições coletivas de caráter panorâmico Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os Brasileiros [Instituto Moreira Salles, 2021], Enciclopédia Negra [Pincoteca de São Paulo, 2021], Um Defeito de Cor [Museu de Arte do Rio, 2022], Dos Brasis [Sesc Belenzinho, 2023], Véxoa: Nós Sabemos [Pinacoteca de São Paulo, 2020], setores da 34ª [2021] e 35ª Bienal de São Paulo [2023], Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro, e Programa Abdias do Nascimento [Intituto Inhotim, 2022/23], entre outras, com o intuito de reescrever as histórias das artes afro-brasileiras e indígenas brasileiras é forte/consistente o suficiente para que, enquanto agentes que se movem em processos de coletividades, nos firmemos e definitivamente ocupemos, com equidade, espaços de modo coletivo nos diferentes âmbitos do mercado das artes? Ou “será que será”, como uma certa galerista-branca-carioca, sem constrangimento algum, ao proclamar publicamente que “o momento dos pretos já foi, agora é o momento dos indígenas”, como quem tem consciência de ditar as regras do jogo, distribui cotas, e como quem avisa/diz: quem pegou pegou, quem não pegou não pegará mais.
São perguntas que lanço para analisar o momento atual. Observar falas como a da certa galerista-branca-carioca só confirma que quem segue ditando as regras do jogo mercadológico das artes no Brasil são os brancos. Será que ainda não entendemos, ou fingimos e ignoramos, que a cor dos que comandam o poder financeiro e institucional das artes no país ainda é a branca? Infelizmente, apesar da crescente quantidade de exposições, a nossa realidade ainda não é a ideal. Nesse espetáculo onde poucos dos nossos estão protagonizando algumas cenas, o nosso imenso coletivo ainda é um elenco que pode ser compreendido como apoio e/ou figuração dentro de tais instituições comandadas por poderes brancos.
Me alegro, e me ponho animada, e celebrante, sim, com todos estes movimentos e conquistas que estamos vivendo, mas não me iludo e me recuso a achar que “a favela venceu”. “Não baixe a guarda, a luta não acabou”, clama Criolo em Samba Sambei.
Sigo perguntando. Será que no próximo coquetel teremos de ter uma performance alertando aos nossos, citando, por exemplo, Liberdade, de Edson Gomes?! “Vamos amigo lute, se não/ A gente acaba perdendo o que já conquistou/ Vamos levante agora/ Que a vida não parou/ A vida não para aqui/ A luta não acabou/ E nem acabará/ Só quando a liberdade raiar.”
Será que afro-brasileiros e indígenas brasileiros das artes contemporâneas estão alinhados, afinados e unidos suficientemente para fincar fundações profundas e firmes para a construção dos verdadeiros impérios livres que almejamos e merecemos dentro do setor das artes visuais? Será que há uma estratégia razoável elaborada para que não passemos de “cotistas” ou dos expoentes dos anos 20′ do séc 21?
Algo me diz que, infelizmente, não. Pois, antes mesmo que tenhamos bons contratos assinados com validades legítimas e que garantam nossas liberdades, com estadias permanentes e passagens de heranças/legados autênticos para nossos futuros representantes, já há pessoas celebrando, como se estivessemos com o amanhã garantido, por termos apenas meia-dúzia dos “nossos” tomando do “mesmo” champanhe que os magnatas das artes bebem há séculos. Que difícil realidade, penso. Primeiro que o copo deles sempre estará mais cheio e com garantia de reposição constante, seja no coquetel de abertura ou em suas belas residências. Já os nossos, não estão garantidos. Como nos diz o poeta Emicida, em Ismália, “A felicidade do branco é plena/ A felicidade do preto/indígena é quase”.
O que nos leva enquanto agentes coletivos marginalizados a acreditar que vencemos ao ponto de sorrir sem nos preocupar onde e com quem estamos brindando?!
Onde estavam todes esses artistas e profissionais das artes que foram e estão sendo “descobertos” só agora? Do que viviam? Do que se alimentavam? Será que seguem vivendo e se alimentando de forma distinta? Ou será que seguem da mesma forma? Será que, de fato, já estamos podendo não nos preocupar com nossos boletos no final do mês? Será que não estamos vivendo uma fase utópica? Será que estamos vivendo no presente como se ele já fosse o futuro concreto e estável que tanto buscamos e merecemos?
Não nos percamos em meio a canapés sem tempero fingindo que tá gostoso como um bom e abundante ajeum preparado e temperado pelos nossos. Não podemos nos respaldar e muito menos reproduzir comportamentos da branquitude, como, por exemplo, celebrar com superficialidade. Isso nunca foi nem será visto como “boas-maneiras” pelos nossos antepassados. Como se diz em minha terra, em bom baianês: se respeite, se compreenda e procure seu lugar. E, quando digo isso, não estou de maneira alguma querendo nos reduzir/restringir a estar somente aqui ou ali, mas sim querendo dizer que devemos estar em todos os lugares, porém a nosso modo, performando de fato quem e como somos, e não praticando hábitos e posturas do opressor. Não podemos esquecer que as portas não foram abertas espontaneamente por eles, e sim arrombadas por muitos e muitos dos nossos, que em sua maioria já não estão aqui para festejar conosco. Infelizmente, estamos longe de poder sentar e relaxar. Ainda estamos vivendo e lutando contra as armadilhas da legitimidade das histórias das artes afro-brasileira e indigena brasileira, meus irmãos!
Para encerrar trago mais duas citações:
Primeiramente, minha amada avó e ancestral, que sempre me dizia, para que eu não me perdesse em meio aos amigos brancos, “ande, aproveite, se divirta, mas não se misture, nunca se perca de quem você é – apontando a própria pele –, pois eles, sempre que tiverem a oportunidade ou a necessidade, te lembrarão que vocês não são iguais e que vêm de lugares completamente diferentes”.
E, em segundo e não menos importante, um alerta bem contemporâneo usado pelo MST, “Quem não luta já está morto”!
Lembremos!
Isso aqui é Brasil, meus irmãos!
Pátria-mãe não tão gentil!
Luana Kayodê é empreendedora Cultural, Gestora e Produtora Criativa, Curadora e Pesquisadora de Arte Visual Anticolonial Afro-brasileira. Investigadora e vivente dos assuntos relacionados/correlatos ao racismo estrutural, com intuito de co-criar junto à instituições e agentes culturais uma sociedade antirracista.
Este texto foi desenvolvido durante o curso Elaborando críticas curatoriais: percursos compartilhados, ministrado por Luciara Ribeiro e Khadyg Fares, no CPF/Sesc.