Conheci Sergio Lima quando nós dois vivíamos momentos transitórios de fases e propósitos de vida. Era outubro ou novembro de 2022. Ele começava a projetar as exposições e publicações que faria dois anos depois, em 2024, no centenário do Primeiro Manifesto Surrealista, de André Breton, movimento ao qual foi visceral e vigorosamente ligado desde a juventude. Eu estava apenas começando a desejar expandir minha atividade editorial da revista para os livros, quando fui convidada a organizar uma monografia sobre sua obra. Foi juntar a fome com a vontade de comer.

“Em que momento você se entendeu como escritor e artista surrealista?” Foi a primeira pergunta que lhe fiz, os dois sentados frente a frente no silêncio acolhedor da galeria MaPA, no Baixo Augusta paulistano. Sergio acabava de iniciar um trabalho com a galeria de Marcelo Pallotta, de ter seu trabalho revisado, relido, reconhecido, valorizado. Estava cheio de ideias de trabalhos e publicações na cabeça e nas mãos.
“O surrealismo não é um padrão, um ponto de partida, nem um ponto de chegada. É um fazer”, me respondeu no começo dessa conversa que durou quase quatro horas e foi dificílima de editar. Ele era exuberante. Profícuo, entusiasmado, incessante, incontível. Aproveitou o microfone ligado pra dizer umas tantas verdades. O porquê de o surrealismo ter sido boicotado pelos modernistas brasileiros. O porquê de terem acolhido a Blaise Cendrars e Marinetti, mas não a Benjamin Péret. Tudo isso explica um pouco por quê Sergio Lima, membro brasileiro do movimento surrealista internacional, ficou apartado da historiografia da arte brasileira por tanto tempo.
Sergio Lima foi artista visual. Chegou aos 22 anos em Paris com uma pasta de desenhos debaixo do braço, duas séries com títulos inquietantes – Fauna Insular e A Tinta dos Seus Dentes –, além de desenhos de sonhos. Ficou hospedado na casa do editor Éric Losfelf, que lhe recomendou escrever uma carta para Breton e colocá-la no “pneumatic”, se queria encontrá-lo. “Você põe em uma caixinha de correio e em duas horas a carta está em qualquer endereço de Paris”, me contou Sergio Lima. “Escrevi pra ele e fui fazer minhas coisas. Quando voltei de tarde, pra tomar banho e sair pro cinema, tinha a resposta do Breton”.


Sergio Lima foi curador: organizou a 13ª Exposição Internacional do Surrealismo, em maio de 1967, em São Paulo. Foi escritor da linhagem poética do amor cortês, do provençal. Seu primeiro livro, Amore, com referências a Dante, Rimbaud e Baudelaire, foi resenhado em 1965 no periódico surrealista francês La Brèche. Mas logo sua literatura se expandiu em direção à imagem, seguindo o caminho do Livro de Horas medieval, composto de versos e imagens. Ainda em 1967, Lima fez seu primeiro algum de collage.
“O romance acontece nas legendas e na collage, é uma história em quadrinhos”, me conta na entrevista que publicamos no livro Sergio Lima – A imagem-acontecimento, a primeira e única monografia da obra de Sergio Lima publicada no Brasil, coeditada em 2023 pela celeste (Cinemática Editora) e a Afluente Art.

Sergio Lima foi teórico e pesquisador. Empenhou décadas de trabalho na composição de dois tomos de 600 e tantas páginas sobre origens, história, cronologias e desdobramentos do movimento. Tentou me explicar porque Aventura Surrealista – Tomo 2 (Edusp, 2015) era, na verdade, a primeira parte. Mas nunca consegui entender. Prometia para qualquer momento soltar o Tomo 3. Foi editor. Em 1967, concebeu editou o primeiro número da revista A Phala e faria o segundo número em 2013.
Sergio Lima foi um apaixonado. Pelo amor, a mulher, o coração, o acontecimento, a mais realidade. Produziu literatura, collage, pintura, gravura, desenho, cinema, até seu último dia de vida, esta quinta feira 25 de julho de 2024. Uma obra que não é ponto de partida, nem de chegada, mas um fazer, que segue em movimento.
