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Retrato de Nabor Jr., jornalista, fotógrafo e fundador da revista O Menelick 2º Ato. Atualmente trabalha no Núcleo de Comunicação do Museu Afro Brasil
Postado em 11/12/2017 - 6:00
Sidney Amaral e a celebração da frustração
Produção de Sidney Amaral tem como emoção disparadora a frustração, transpassada por reflexões sociais e raciais
Nabor Jr.
O Atleta ou O Sonho de Kichute, 2013 (Fotos: João Liberato)

“Celebrar o artista negro e os seus feitos, desde os tempos terríveis da escravidão até os dias não menos severos de hoje, será sempre um ato de frustração.”  Proferida por Emanoel Araujo no texto de abertura do catálogo A Nova Mão Afro-Brasileira (2013), a sentença se vale do persistente quadro de exclusão e violência que vivemos desde o início do tráfico atlântico dos negros.

A sensação de incapacidade diante de desgostos sofridos ou da inépcia diante de obstáculos intransponíveis, a qual chamamos de frustração, quando ressignificada, mesmo que de maneira antagônica a sua “função” literal pode atuar como uma emoção disparadora de processos artísticos.

Artista de múltiplos recursos, pintor, escultor e desenhista, Sidney Amaral (1973-2017), simultaneamente homem, marido, pai e professor da rede pública de ensino, assim o fez, com esse sentimento cotidiano inerente à condição humana. Aliás, foi justamente a partir das fragilidades existenciais observadas no trivial cotidiano do homem negro comum, inserido numa sociedade sempre disposta a esquecer os valores destinados a todos, sem exceção, é que surge o substancioso conjunto de autorretratos do artista.

A celebração da frustração em Sidney Amaral está no modo sofisticado em que arquiteta a poética do tema, ou dos temas, que apresenta nos seus bidimensionais em aquarela e acrílica. Majoritariamente são trabalhos acompanhados de reflexões raciais e sociais, flertando com as angústias existenciais do artista, e igualmente de sublime construção técnica.

Obras como Incômodo e História do Sanitarismo no Brasil (O Trono do Rei), são bons exemplos desse pensamento que celebra as fragilidades humanas. Sem que isso, contudo, implique uma narrativa que anule a proatividade do receptor que entra em contato com a sua obra.

Incômodo e História do Sanitarismo no Brasil (O Trono do Rei), 2014

 

“Essa frustação aparece em meus autorretratos como na tela Bem Me Quer, que chamo de relações delicadas, na qual me represento na maioria das vezes em cinza (como disse Klimt, ‘não sou particularmente interessante’), onde procuro mostrar, através da relação do meu personagem com os objetos apresentados, como a comunicação entre as pessoas é difícil mesmo entre aqueles que se amam (o vestido de noiva e as luvas de boxe, por exemplo), a condição de ser pai hoje (eu e a criança em uma cadeira-abismo), enfim, são questões que estão mais ligadas ao espaço íntimo do lar (…)”, afirmou o artista em entrevista concedida ao crítico e pesquisador de artes Alexandre Araújo Bispo, no início de 2012.

Protagonista de suas próprias frustrações, e também ator principal dos desencantos com a sociedade em que vivemos, o virtuoso Sidney Amaral, que ainda jovem constituiu-se como referência entre os artistas negros brasileiros contemporâneos, produziu, especialmente a partir do início da segunda década do século 21, autorretratos icônicos, fundamentais para compreendermos a produção dos artistas negros brasileiros de hoje e suas inquietações. Mãe Preta (A Fúria de Iansã), Gargalheira (Quem Falará Por Nós?) e Imolação refletem a força da narrativa desse artista que no auge de sua carreira nos deixou.

Frustração é saber que não mais teremos novas ressignificações de objetos convencionais e cotidianos subvertidos em sua materialidade. Frustração é ter a consciência de que não mais contemplaremos a subversão que o artista fazia da natureza das coisas e sua capacidade sutil de ironizar o status quo e a relação entre público e obra. Não mais veremos a excelência no trato com o mármore, bronze e suas esculturas de realismo fantástico.

Celebremos a frustração de Sidney Amaral, sua competência, virtuosismo e, acima de tudo, a sua obra, ad aeternum.