O projeto que pretende impor regras aos professores sobre o que pode ser ensinado em sala de aula, proibindo na escola a discussão de questões de gênero e a manifestação de posicionamentos políticos e ideológicos não é somente um ato obscurantista, no sentido medieval do termo. Voltar alunos contra professores, incitando práticas de vigilância e denúncia, é um atentado à cidadania e à formação de novos cidadãos.
Felizmente o Escola sem Partido está recebendo no Congresso e em diversos segmentos do poder público e da sociedade a devida contra-argumentação. “Dificultar a manifestação plural de pensamento é amordaçar professores e alunos. A única força que deve ingressar nas universidades é a força das ideias”, afirmou a ministra Carmen Lúcia (El País, 20/11/18). “Professores são um perigo, não porque eles façam nossas crianças pensarem isso ou aquilo, mas porque as fazem pensar”, escreveu Vera Iaconelli, doutora em Psicologia pela USP (Folha de S. Paulo, Escola Partida, 6/11/18).
Cabe então recorrer aos templos que guardam a inteligência nossa de cada dia: as bibliotecas. O gesto de levantar o véu da ignorância é a imagem, na forma de obras de arte, que ilumina duas das maiores bibliotecas do mundo: Sainte-Geneviève, em Paris, e Biblioteca do Congresso, em Washinghton. Elas podem ser visitadas no roteiro de “A Biblioteca à Noite”, misto de exposição, cinema e espetáculo teatral, em cartaz no Sesc Avenida Paulista até fevereiro. Trata-se de passeio em realidade virtual a dez célebres bibliotecas ‘visitadas’ pelo escritor argentino Alberto Manguel, no livro A Biblioteca à Noite (Companhia das Letras, 2006).
As visitas guiadas pelo atual diretor da Biblioteca de Buenos Aires incluem o Templo de Hase-dera, do século 16, no Japão; a fictícia Biblioteca de Nautilus, acalentada pelo capitão Nemo de 20.000 Léguas Submarinas; e Alexandria, que nasceu no século 3 a.C da vontade de reis ptolemaicos de preservar os ensinamentos de Aristóteles e da ambição de reunir todo o conhecimento existente no mundo. Desaparecida em um incêndio, Alexandria é a mãe das bibliotecas. “Um livro não termina nunca. Uma biblioteca, memória, mesmo incendiada, jamais se extinguirá”, escreve Manguel.
Os textos sobre as bibliotecas situam o visitante no tempo e no espaço, mas falham em um ponto crucial: esquecem o que o próprio Manguel ensina: toda biblioteca é autobiográfica e segue um sistema de catalogação que em muitos casos é singularmente idiossincrático. Falta ao recurso multimídia, a cargo do laureado diretor de teatro canadense Robert Lepage, o primeiro plano ao que dá alma e razão à biblioteca: o livro.
Mas “bibliotecas são como miragens no deserto: quem conduz a elas seu destino não encontra meio de matar a sede”, segundo o escritor carioca Alberto Mussa, que tem uma biblioteca no centro da trama de seu mais recente romance, A Biblioteca Elementar (Record, 2018). O primeiro acesso às estantes vem apenas atiçar a curiosidade sobre os mundos que os livros contam. E a exposição é, no mínimo, um grande estímulo.
“É uma forma muito antiga de domínio, a restrição da inteligência”, escreve Mussa. “O Rio de Janeiro, no princípio do setecentos, era uma cidade perigosa, pois a Inquisição havia inoculado nas pessoas o vício da denúncia”. Contra a ignorância, o amordaçamento das inteligências e as fake news, nos setecentos ou nos 2000, teremos sempre os livros e as bibliotecas.
Serviço
A Biblioteca À Noite
Sesc Avenida Paulista
Avenida Paulista, 119 – São Paulo
Até 10/2/2019
sescsp.org.br