Na economia simbólica da Grécia Antiga, quando os deuses, semideuses, heróis ou mesmo humanos/ mortais tinham seus feitos reconhecidos como extraordinários, ou, ainda, quando eram objeto de amor, admiração ou desejo por parte dos deuses, sua existência podia alçar o estatuto de constelação no céu. Suas histórias, imagens e feitos abdicavam da existência original, sendo-lhes oferecida (ou algumas vezes forçada) uma possibilidade de perpetuar-se sob a forma de constelação, evitando a morte (o Hades) ou esquecimento ordinário – destino da maioria dos seres. Dá-se o nome de catasterismo a esse processo de se tornar constelação através de uma metamorfose.
Os deuses, portanto, recorriam frequentemente ao catasterismo como recurso exclusivo para manter aqueles que lhe eram queridos. Quanto à etimologia, a palavra “catasterismo” é um cultismo derivado do grego καταστερισμοί (κατά: em cima, abaixo; + στήρ: estrela, astro), cujo sentido é nada menos que colocado entre as estrelas. A origem do termo vem do título de um livro de Eratóstenes de Cirene, matemático grego estabelecido em Alexandria. Nessa obra (perdida), o autor discursava sobre algumas dessas metamorfoses estelares, listando e narrando os mitos associados a cada uma das constelações. Além de matemático, Eratóstenes foi diretor da Biblioteca de Alexandria, mitógrafo, geógrafo, astrônomo e filósofo. Nascido em 276 a.C., na cidade de Cirene, antiga colônia grega na atual Líbia, Eratóstenes viveu na Grécia antiga, na segunda metade do século 3º a.C., período histórico conhecido como Helenístico, e ficou conhecido por ter realizado uma série de cálculos com o objetivo de medir a circunferência da Terra.
Chama-se mitografia o conjunto de narrativas a respeito dos mitos, que pode ser organizado de acordo com um critério analógico ou genealógico. Quando pensamos, então, nas constelações, deparamo-nos com uma espécie de mitologia do firmamento, isto é, as histórias (muitas vezes cruzadas) dessas criaturas metamorfoseadas em estrelas por meio de uma transmutação, uma elevação sideral.
Muitas são as tentativas de pensar o tema do mito e suas implicações para entender o contemporâneo. Com Lacan, por exemplo, o mito aparece como aquilo que confere uma formulação discursiva a algo que não pode ser transmitido na definição da verdade, já que a definição da verdade só pode se apoiar sobre si mesma, à medida que a fala progride e a constitui enquanto verdade. Para Lacan, não haveria acesso à verdade objetiva das coisas, exceto de forma mítica. Nesse sentido é que Lacan afirmará, em O Mito Individual do Neurótico, ou a Poesia e Verdade na Neurose (1952), que a verdade possui uma estrutura de ficção. Já de acordo com Lévi-Strauss, em O Cru e o Cozido (1964), haveria unidades constitutivas operando nos mitos como grupos de notas em partituras, analogia da qual emerge a função da repetição na estrutura mítica: “A repetição possui uma função própria, que é de tornar manifesta a estrutura do mito”. Lévi-Strauss completa: “Todo mito possui, portanto, uma estrutura folheada que transparece na superfície, por assim dizer, no e pelo processo de repetição”. É, portanto, na repetição que o mito estabelece sua consistência narrativa.
Dando continuidade aqui à temática da analogia e da repetição, com a máxima do três vezes grande Hermes Trismegisto, que determina que “aquilo que está acima é como aquilo que está abaixo”. Trata-se do princípio da correspondência, que diz respeito aos padrões – visíveis ou não – presentes em todas as dimensões da nossa existência. Em conformidade com essa lei, o estudo minucioso do microcosmo oferece chaves de compreensão para o macrocosmo e o inverso também será verdadeiro, já que sempre haverá uma correspondência de um em relação ao outro. Dessa maneira, se tais seres, criaturas e núcleos míticos foram constelados acima no firmamento, a fim de que sua eternidade fosse afirmada segundo a vontade soberana dos deuses, de maneira análoga e correlata os mesmos núcleos míticos também estarão sempre caminhando conosco aqui embaixo, na Terra, de forma infinita. Repetindo-se, firmando uma atualização em estado presente através de uma transfiguração, de uma metamorfose simbólica.
A título de exemplo, a cada vez que uma mulher sofrer alguma violência sexual, social e de gênero, sendo culpabilizada no seu lugar de vítima, teremos Medusa sendo transformada novamente em monstro por Atena, com seus cabelos de serpentes e seu olhar que transforma em pedra. Esse feminino terrível e essa mulher violentada – a mulher vítima sendo vilanizada e posteriormente decapitada – constituem o núcleo mítico de Medusa. Foi, nesse sentido, sob a ativação nos céus de Caput Algol, a constelação que versa sobre o mito de Medusa (situada aos 26 graus de Touro), que, entre abril e junho de 2022, se desenrolou o julgamento altamente midiático protagonizado pelos atores hollywoodianos Johnny Depp e Amber Heard. Assim como Medusa, Heard também ocupava o lugar da vítima de violência física e sexual. Pudemos testemunhar a cabeça de Medusa rolando simbolicamente pelos ares, na proporção que a imagem pública de Heard foi demolida paulatinamente, na mesma proporção em que os memes misóginos e ofensivos se acumulavam como enxame nas redes. Pudemos ter notícia do encerramento de alguns dos seus principais contratos profissionais e constatamos o limbo evidente que sua carreira de atriz há de enfrentar, se não definitivamente, ao menos pelos próximos anos. A vítima perfeita não existe e parece que nunca aprenderemos isso. Ainda veremos Medusa perder sua cabeça muitas e muitas vezes.
A cada vez que observarmos – com certo prazer secreto – a queda humilhante de uma figura proeminente extremamente vaidosa, lembraremos da expressão “fulano já já vai cair do cavalinho”, e lembraremos, por fim, de Belerofonte, aquele herói que tentou alcançar o Olimpo de maneira ilícita, e de Pégaso, seu cavalo alado, que o derrubou do alto. Lembraremos de outros cavalos e outras quedas; lembraremos do Cavalo de Troia e da queda de uma, duas, infinitas cidades. Toda vez que tiver lugar aqui na Terra um amor imenso e simbiótico, cheio de sacrifícios e aspirações à posteridade, virá à memória Formalhaut, a estrela da Boca do Peixe Austral (a 3 graus do signo de Peixes), que bebe toda a água do dilúvio para evitar um mal maior. Lembraremos de quem fomos, de quem somos, porque a repetição é um looping do qual não parece ser possível escapar. As estrelas não são luminosas à toa, elas nos lembram de algo. Assim como acima, as estrelas no céu caminham conosco na Terra vestidas com roupagens outras, transfiguradas e atualizadas ao longo dos séculos sempre para o presente. Mas não nos enganemos. O espírito do tempo é brincalhão e a eternidade é um presente de grego.