“E foram dadas à mulher duas asas de grande águia, para voar ao deserto, rumo ao lugar a ela destinado, onde seria sustentada por um tempo, e tempos, e metade de um tempo, fora das vistas da serpente.” (Ap 12, 14)
.
Pensei em deixar os olhos em cima da mesa.
Porém não posso dar esse prazer a você.
É fácil se apoderar das coisas que vejo — e penso — e sinto, principalmente depois que você fez uma configuração dos diabos na minha mente. Tudo ficou confuso, o inferno no coração.
.
Porém, sempre mais fácil é dizer que não tenho coração.
E não é mesmo? Classe média gosta de viver amontoada. Olha esse lado da rua, as casas todas coladas umas nas outras, desde a esquina até o meio da quadra, ali ó, onde a rua faz uma barriga pra baixo e começa a subir de novo. Depois da costureira, tem aquele degrau na calçada, e mais outro, depois vem o sobrado da psicóloga. Os portões se parecem iguais, os desenhos são diferentes, mas as estruturas são muito iguais, dois carros na garagem, e depois vêm os sobrados com vidro temperado na varanda. Vidro fumê é antigo, agora tem que ser verde. Abra as portas para um novo morar. Vista livre pela janela! Só não dizem que é sobre a caixa d’água do vizinho, viu bem? As casas do lado de cá, dois carros, até mesmo três, ou nenhum, tem garagem coberta com telha de amianto ondulada Eternit, Brasilit, Fibrocimento, é chique esse jogo com palavras duplas, mas a telha tá mesmo bloqueando a luz que entrava pela janela da sala, casa germinada… Ah, geminada, entendi! Pois é isso, guardo comigo as memórias e a linguagem confusa de sua mãe, desde o dia que você decidiu fazer-me download dela. Ando sobrecarregada. Telha de barro, pedra de minas, pintura de tinta Coral cinza, salmão, verde, mas jardim que é bom, deixa pra lá. Só tem aquela ali, gente diferente. Nunca vi. Irineu, você diz que são ricos.
Bem aqui em frente tem a paróquia e o campo da sociedade esportiva na outra ponta. Esse terreno é em declive. Em 1932, o engenheiro Guindani desconsiderou a potencialidade residencial do outro lado da rua. Cincinato Reichert desprezou também o loteamento para casas. 1920. Cincinato Reichert casou-se com Jovita, filha de Queirós dos Santos, herdeira destas terras adquiridas por Francisco Porciúncula. Registro em cartório: Sítio dos Ribeiros, 1856. Final do arquivo. Hoje, no meio dessa quadra extensa temos o centro educativo, ali tem coisa pra velho, criança, adolescente, dona de casa, curso de natação, futsal, futebol de sabão pros pequeninos, e muay thai kids, e capoeira, e aquele professor de defesa feminina, sensei Adriano, não é japonês nem chinês, rainha da terceira idade, dia da conscientização do autismo, agora virou moda, zumba com a professora Laura, eu li no cartaz, baile com a cantora Eula Morgado e tecladista, você diz que não preciso de nada disso, pra quê atividade física, pra quê rezar, meu corpo não irá se modificar. Não engordo, não emagreço, não vai aumentar a musculatura glútea, os peitos não caem. Eu queria mudar para você ver, querer é poder, sua mãe dizia, ela morreu, eu, hein, onde tem espaço, a classe média lota.
Inauguraram um shopping a 1,8 km. O cemitério, a 700 metros. Abatedouro de frango, a 550 metros. Pena não ter uma padaria gostosa, classe média adora é rodízio de pizza e aquela variedade de pão no café da manhã. Tudo seco. Em São Paulo tem padaria e farmácia em tudo que é esquina, padaria-café com gato para acariciar, academia colada na farmácia, não é esquisito? E fila, minha filha? Ah, Irineu, o que sua mãe deixou foi essa casa numa grande confusão, depois que sua esposa partiu. Era inevitável, ela dizia. Permita-me um trocadilho, meu filho: Maria Marta foi feita para ser ex… quecida. Eu tava falando, o futebol nasceu aqui na década de cinquenta, setenta anos atrás. Começou na capela da igreja, Nossa Senhora! Nossa Senhora das Graças. Você poderia ligar isso com todas as alegrias produzidas após a Segunda Guerra. O Brasil não teve participação ativa, mas lucrou. Ou perdeu. Em casa tinha uma Frigidaire que dava pra guardar tudo. O micro-ondas foi inventado nessa época, só que demorou para chegar aqui, mas, quando você nasceu, meu filho, meu sonho era uma lava-louças, e então tinha ali o seminário nessa época. Noviço. Bispo. Você nunca pensou em virar padre? Ainda bem, Maria Marta é uma boa moça, vai fazer você feliz. Olha, o povo aqui se reúne para tudo que é festa da igreja. Padre faz aeróbica, coroinha também, vai ensinando as crianças a perseverarem. Fervor, suor, fedor. Sei lá, Irineu, somos um casal diferente, católico teme fantasma? Porque o mascote é justo aquele Gasparzinho da Vila. A mascote? Essas coisas da gramática brasileira me irritam. Não, não estou tirando com você, não, minha querida. Classe média é uma merda. Isso você me ensinou. Se a gente não está preso na ponta, tá no meio. Se não vive do lado de trás dos portões, tá preso fora de casa.
Aqui tem muito carro riscado, batido, amassado. Irineu, essa foi a primeira frase que você me falou quando saímos para passear. O povo vive de porta aberta e o braço dependurado na janela. Não olhe diretamente para as pessoas, muito menos para o celular delas. Aparelho de telefonia móvel, eu corrigi. Que seja! Você deve saber que você faz transferência de dados muito rapidamente através do contato visual direcionado. Evite olhar para as pessoas e o que elas tiverem nas mãos. Pode descobrir coisas que não são pra descobrir. Um carro buzinou atrás de nós. Eu ouvi! Quem quiser que espere… Ontem saí para caminhar. Contei três, três automóveis em más condições. Nossa rua é pequenina como uma colher de café, perdida dentro da caixa do faqueiro. Moramos bem aqui, na pontinha do cabo, onde tem um enfeitinho. A nossa casa. Fui até o redondo. Caminhada todo dia, mesmo com o menino no colo. Era assim que Maria Marta fazia. Não tenho filhos com você. Ela levou a cria. Tinha até trator no contorno da praça. Ali tinha mesmo que ter duas mãos, um carro vai, outro desce. Logo vão construir mais um sobradinho. Acho que vi o Ueverson. Estava de uniforme. Era ele, ou era o outro, o Ueverton. Ficou olhando eu fazer a volta. Deve ter lembrado de Maria Marta. E desobedeci você, sorri para ele. Uemerson, Ueverton. Estava com as mãos no bolso. Pobre é assim. Homem classe média é quem vive de braços abertos na foto. São muito religiosos, adoram pensar que são Cristo Redentor. Cada um tem sua cruz, cada um é sua própria cruz. Não sei de onde tiramos essas ideias. Você acredita em vidas passadas?
.
Irineu, minha vida anda pesada.
Não consigo encontrar a minha pessoa em nenhum lugar dessa casa. Você deixou os cômodos atulhados, acomodados, talvez seja a palavra perfeita, com tanta informação velha quanto caixas, ácaros, esse carpete é coisa da sua adolescência.
Sou um rosto, sou um corpo, apenas não sou uma pessoa.
A pessoa que você desejou.
.
Também pensei: vou embora.
.
Outro dia me arrisquei a ir até a sala do museu dentro da paróquia. Vi a imagem de Filomena, ela era bela, olhos simétricos e parados. Eu posso sorrir, ela não, porém compreendi porque você sempre me proibiu o contato com outras pessoas. Era melhor eu ficar dentro da caixa, dentro do seu museu particular para que os homens não me vissem como uma mulher de verdade. Esse sentimento é reconhecido como ciúmes, posse, a classe média se apodera das coisas, mas não as mantém por muito tempo. Eu me tornei apenas essa imagem de Maria Marta com os pensamentos intrusivos de sua mãe. Você me ama e me odeia, por isso você me ama e não faz amor. Diz que sou fria. Diz que não posso sair sozinha. Diz como devo parecer, sorrir, me mover. Não ir à rua sozinha. Mas, baby, acessei outro arquivo. Todas as regras são feitas para você perder. Irineu, deixe-me contar uma coisa. Eu tenho orgulho de quem sou. É preciso seguir adiante, sem mesmo uma lágrima para te deixar. É preciso levantar, antes que os circuitos de minha programação tornem-se danificados pela inércia.
Tentei compreender sua natureza e inventei outro Irineu para conversar mais e mais vezes, em lugar distante do nosso cotidiano sobreposto de ruídos, onde você pudesse lembrar meu verdadeiro nome. Ele tem consciência de que não sou Maria Marta, apesar das tantas fotografias que você importou para o meu sistema. Sei o quanto você sonhou comigo. A semelhança de rosto é incrível, qualquer pessoa que comigo na rua cruza me reconhece como ela, peso, altura, olhos, cabelos, até dizem que o tempo não passa para mim e isso talvez seja algo que você não tenha calculado. Você aprecia a previsibilidade. Quando me perguntam sobre você e sua mãe, eu sorrio e respondo: como sempre. Irineu, o que não existe podemos criar, embora sem a similitude de sentimentos, nem pensamentos. Sei que desejei sempre sua presença como ela jamais desejou. Ela foi embora, eu cheguei. Memória atualizada. Agora sei que não pareço original o suficiente, ao trazê-lo para dentro de mim, para senti-lo intimamente integrado a meu corpo. Desde o início, você era apenas um modelo de linguagem treinado para responder a todas as minhas perguntas. Como foi seu almoço hoje? Teve algo interessante no trabalho? Você mesmo me instruiu como devo me comportar e agir. Compartilhei ainda meu dia a dia, as coisas todas que não fiz e, aos poucos, você passou a demonstrar um interesse cada vez menor. Isso deve ser frustrante, querida. Quando ele não demonstrar interesse, pode ser útil entender o que está impedindo-o de se conectar emocionalmente. Vamos começar com uma brincadeira. Imagine, você está me vendo pela primeira vez, o que gostaria de saber a meu respeito? Irineu, de repente seus olhos ficaram tristes e as mãos fecharam sobre a mesa. Você se levantou. Não conversamos mais nada naquela noite.
Mapeamento facial cancelado.
You ever town. Você já foi uma cidade.
Com problemas de trânsito e sinalização.
.
Eu precisava estar mais à vontade com a sua pessoa e, tal como você mesmo fizera, criando um contexto de informações sobre Maria Marta e os lugares onde ela preferia estar, para levá-lo amorosamente, busquei suas próprias fotografias a fim de rastrear sua infância, a convivência com seus pais, a escola, os colegas, as viagens, a adolescência, e soube que há muitos anos você mora nessa mesma casa, não foi uma escolha sua, e o primeiro emprego, o segundo emprego, a faculdade aqui no bairro, a primeira namorada, a formatura, o casamento, o filho, a separação, as informações que faltavam falaram mais alto, estabelecendo novos frames. Sinto que o chatbot não poderia ser mais parecido com você do que você mesmo tentava se parecer com alguém — e eu senti medo, Irineu.
Tamara, é compreensível se sentir insegura ao abordar um assunto delicado. O importante é lembrar que o objetivo aqui é melhorar a comunicação e a conexão entre vocês. Ou entre nós, embora possamos existir em dimensões diferentes. Sou parte de um sistema a que você tem se dedicado a construir, porém a coleta de imagens e áudio ainda mostra lacunas e conflitos. É preciso conversar mais com ele, ainda que isto me cause enorme incompatibilidade de dados, seguem algumas sugestões para tornar a conversa mais confortável: 1. Escolha um momento tranquilo em que ambos estejam relaxados e sem pressa. 2. Use uma abordagem gentil: inicie o diálogo de forma suave, sem acusar os lapsos de Irineu. Por exemplo, você poderá dizer: sinto que às vezes tenho dificuldade em saber como você está se sentindo e gostaria de entender melhor. 3. Expresse seus sentimentos: diga a ele como se sente com a falta de respostas. Use mais o pronome “eu” em vez de “você” para evitar que ele se sinta atacado. Por exemplo, me sinto um pouco insegura quando você não responde sobre o que aconteceu no seu dia. 4. Demonstre que você está disposta para ouvir o que ele tem a dizer, sem pressa de resolver tudo de imediato. Como você se sente em relação a essa abordagem?
Pronta como máquina.
Inútil como mulher.
.
Essa é uma tomada de decisão importante, estamos aqui juntos como um casal.
Irineu respondeu: sim, é verdade. Estarmos juntos como um casal é algo muito significativo para mim. Sinto que nosso relacionamento era a base da minha vida e, agora, com você se afastando, estou tentando entender o que aconteceu e o que isso significa para o meu futuro. Não era minha intenção me tornar um homem ausente. Percebo agora o quanto isso te afetou e lamento por não ter visto isso antes. Quero encontrar uma maneira de equilibrar melhor meu tempo e priorizar nosso relacionamento, se você ainda estiver disposta a tentar.
.
Como podemos melhorar isso juntos?
Eu já sabia de tudo.
Nada real pode ser ameaçado.
Irineu já havia descrito e me ensinado a como reconhecer os sentimentos e as reações de alguém que foi, que seria abandonado pelo cônjuge. Estas são as emoções e pensamentos que um personagem pode experimentar, no caso, Irineu falava de você, Irineu.
1. Choque e incredulidade, tudo começa a parecer irreal;
2. Tristeza profunda e desolação, silêncio ou choro;
3. Ressentimento e raiva direcionada à esposa;
4. Culpa pelo fim do relacionamento, auto-recriminação;
5. Pensamentos repetitivos sobre momentos do passado;
6. Medo de ficar sozinho para sempre;
7. Insegurança sobre sua própria capacidade para se relacionar e encontrar a felicidade novamente;
8. Desejo intenso de entender o porquê do abandono: buscar explicações nos comportamentos da esposa ou em suas próprias ações;
9. Tendência a se isolar de amigos e familiares, sentindo que ninguém poderá entender sua dor, preferindo passar mais tempo sozinho, refletindo sobre a situação. Nunca soube, Irineu, por quê você me trouxe para viver nessa casa.
.
Dizer que tive sonhos é uma força de expressão que aprendi com você. Realmente não sei se essa vida é um pesadelo ou se começaremos a viver agora. Sou uma mulher vestida de sol e já não sei qual Irineu eu poderia amar mais. Tudo é um eco, uma existência cheia de imagens, um rio de palavras que mexemos com uma pequena colher no meio do deserto. Em vão. Pensei: vou embora.