Na 22ª edição da Bienal Sesc_Videobrasil | A Memória É uma Ilha de Edição, também comemoração de 40 anos do evento, os registros das narrativas e contranarrativas do Sul Global estão ainda mais em evidência. Em cartaz no Sesc 24 de Maio, a exposição conta com 60 artistas convidados e selecionados via chamada aberta pela curadoria de Raphael Fonseca, do Brasil, e Renée Akitelek Mboya, do Quênia.
Apesar das recentes transformações das narrativas históricas e políticas e da forma como as encaramos e participamos delas – vide a força com que as correntes descoloniais têm alçado o meio institucional da arte e a transmissão em tempo real, na palma da mão, da guerra Israel-Hamas –, na mostra, a experiência das obras nem sempre parece corresponder a um discurso curatorial que está visceralmente implicado nessas discussões. Isso fica explícito, por exemplo, na instalação Soliloquy (2018-2023), do coletivo indonésio Tromarama, em que uma das salas expositivas é tomada por abajures de mesa de diferentes modelos, com suas luzes sincronizadas a uma programação ligada ao X (antigo Twitter). Cada vez que a hashtag #kinship (parentesco) é usada, a publicação online é convertida em código binário, destinado a acionar e interromper os interruptores.
A relação entre esse dispositivo digital e o questionamento de concepções hegemônicas de memória – um statement curatorial – está cifrada nessa obra. Porém, legível em trabalhos realizados em vídeo, nos quais o discurso mnemônico se constrói, sem metáforas, em ilhas de edição. Isso ocorre no vídeo Fragments Untitled (2012), da dupla sérvia Doplgenger, que costura relatos pessoais e imagens televisionadas da Guerra Fria; e no vídeo Aparição (2018), da brasileira Camila Freitas, com montagens de memórias familiares e sobrenaturais.
O SUL EM REVISÃO
O Sul Global, pano de fundo conceitual no qual o Videobrasil se apoia desde os anos 1990, entrega ao evento uma “produção vinda de países com histórias assemelhadas de subordinação política e cultural”, como sinaliza Solange Farkas, fundadora da mostra e associação cultural, no texto desta edição. Mas a definição de Sul Global é imprecisa e ruidosa.
O conceito geopolítico para a definição de países que estão em desenvolvimento, ou que passaram por processos de colonização, ou que estão à margem de centros hegemônicos na ordem global neoliberal, substituiu termos colonialistas como Terceiro Mundo. Mas, como outras teorias que buscam permanentemente se atualizar em relação às transformações da sociopolítica atual, os usos do termo Sul Global também estão em revisão.
Um questionamento contundente veio da pesquisadora Patrícia Mourão no artigo acadêmico “Sobre algumas ruínas, uns lamentam, outros dançam: a presença portuguesa na 20ª edição do Videobrasil”, de 2018. O mesmo estranhamento quanto à assimetria de se colocar Portugal – país que alimentou com sangue a economia colonial – ao lado do Quênia, por exemplo, sob o mesmo guarda-chuva do Sul Global, caberia em relação à China – que, embora integrante do BRICS, protagoniza escalada fulminante na macroeconomia global –, presente em quatro trabalhos desta 22ª edição.
Pink Mao (2021), de Tang Han, aborda com propriedade as contradições da história da China. O vídeo discorre sobre a ascensão e queda da imagem do líder revolucionário comunista Mao Tsé-tung, que governou o país em uma ditadura entre 1949 e 1976 e foi recentemente multiplicada e impressa em notas de dinheiro, em cor-de-rosa. “Ele renasceu por meio da moeda”, diz o vídeo. Mas, contraditoriamente, o dinheiro está perdendo a batalha para formas de pagamento digitais que já dominam a economia da China. “Seu retrato foi codificado em dígitos”, continua a narradora do vídeo. “Mao está enfrentando uma crise da sua representação.”
Em depoimento ao jornalista Oliver Basciano, da Art Review, o curador Raphael Fonseca define o conceito de Sul Global como “uma ideia ficcional de comunidade, conhecimento e criadores que contrasta com o Norte hegemônico”. Diante das contradições que remodelam as identidades políticas e econômicas dos países e suas relações de poder, caberia ao projeto Videobrasil especular sobre o futuro desse conceito de coletividade artística chamado Sul Global.
SERVIÇO
22a Bienal Sesc_Videobrasil – A Memória É uma Ilha de Edição
Até 25/2/2024
Sesc 24 de Maio
Rua 24 de Maio, 109, República, S.o Paulo
sescsp.org.br/24demaio