A homenagem dos surrealistas a Heráclito retoma a ideia de combinação de elementos heterogêneos, por meio dos quais a criação poética de metáforas faz emergir imagens situadas na junção de duas realidades induzindo a um efeito de transformação ou metamorfose. Por exemplo, a afirmação do Conde de Lautréamont [pseudônimo literário de Lucien Ducasse, 1846-1870], retomada pelos surrealistas, de que a “beleza é o encontro entre uma máquina de escrever com um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecação”. Temos aqui três imagens muito fortes para representar a linguagem: a morte (a escrita como permanência), a costura (o texto como tecido, a téssera) e o guarda-chuva (o meio universal). Elas são justapostas para criar um efeito de hiato entre elas e, ao mesmo tempo, uma unidade poética de significação, dada pela beleza como metáfora.
O EFEITO HERÁCLITO
O efeito Heráclito – esses novos simulacros ameaçadores que agem hábil e corrosivamente com a claridade das aparências físicas e diurnas, fazendo-nos sonhar através de seu especial autopudor com o velho mecanismo metafísico, com alguma coisa que de bom grado nos confundirá com a essência mesma da natureza, que, segundo Heráclito, ama ocultar-se – parece agir transversalmente sobre o surrealismo, tanto em sua versão marxista quanto na antropológica, sendo também detectável em Nietzsche, Bergson e Freud. Essa incorporação genérica da dialética do fogo não serve tanto para superar contradições entre sujeito e objeto, mas, segundo Henri Meschonnic, em Modernidade e Modernidade (2017), para estabelecer que o “infinito do sujeito é a modernidade” e a modernidade é a celebração da contingência contra a necessidade.
O fim das vanguardas, que se repete sem cessar, o fim do messianismo político, que se repete sem cessar. O conceito estético de identidade do eu, presente de maneira variada em Adorno, Nietzsche, Freud e Klages, vai se esgarçando, desde a pintura expressionista, gradualmente produzindo o consenso de que o antimoderno é a essência do moderno. O homem jamais se reencontrará na pátria perdida da infância, na memória restaurada de seu romance neurótico, na estabilidade inercial do museu ou das suas narrativas da história.
A criação da realidade de um hiato é uma maneira de reescrever o princípio do fogo como causa da transformação. A proposição de Heráclito, retomada na origem do pensamento de Hegel, não serve apenas a uma espécie de dialética entre imagens e palavras, como se houvesse apenas uma alternância entre sentido literal e sentido metafórico. Se feito da maneira surrealista, ou seja, em estrutura de ato, cria-se uma juntura de realidades. Esse hiato da realidade com relação a ela mesma, essa desidentidade da realidade, funciona como causa indutora da metamorfose. Se isso é pertinente, encontramos nas origens do pensamento lacaniano uma ontologia do devir, no interior da qual o tempo é uma função crucial tanto da realidade como da verdade. Daí também que a noção de fluxo ou transformação origine uma reflexão sobre o infinito. O devir é a união do ser e do nada, “o fogo, nesse sentido, é o processo na forma real, na realidade; aquilo que tornaria o tempo, que é abstrato, real”, de acordo com Meschonnic.
Em sua tese de doutorado, A Psicose Paranoica em Suas Relações com a Personalidade, Lacan procura um modelo crítico e não metafísico de personalidade, o sentido subjetivo dos fenômenos objetivos da loucura. Assim como no poema que Lacan envia ao amigo Ferdinand Alquié [leia o poema na terceira parte do texto, publicada na edição #59], no qual o fogo parece ser um hiato de realidade, entre água e luz, na tese ele propõe uma causalidade tripla para a paranoia de autopunição: uma composição entre causa eficiente (infância), causa ocasional (modificações da pulsão) e causa específica (tendência concreta e reativa). Mas, contrariamente à solução mais simples, baseada na soma de fatores causais, e uma multiplicidade de substâncias (mental, orgânica, material, social), Lacan recorre ao monismo de Espinoza, para quem a substância não é a forma, a ordem das ideias é a ordem das coisas e a existência é ato, como maneira de reunir as determinações em um único princípio transformativo, equivalente ao fogo de Heráclito.
A tese representaria, portanto, uma versão pré-hegeliana do materialismo surrealista. Ela recebe apenas três resenhas, uma de Salvador Dalí e outra de Paul Nizan. Se há uma afinidade crítica na tese que permitiu a Lacan inverter a fórmula de Dalí – de que, se a paranoia é um método de conhecimento, isso acontece porque o fenômeno do conhecimento é ele mesmo paranoico – e daí reencontrar a ideia freudiana do eu como um sistema de projeções, talvez a congruência mais decisiva esteja na prática do método, ele mesmo, que consiste na duplicação da imagem, a interpolação de um objeto estranho que redundará tanto na produção de uma imagem compósita quanto em um resíduo paranoico, gerado pela fratura de sentido.
É por um processo distintamente paranoico que foi possível obter uma imagem dupla: quer dizer, a representação de um objeto que, sem a menor modificação figurativa ou anatômica, seja ao mesmo tempo a representação de outro objeto absolutamente diferente, desprovida ela também de todo tipo de deformação ou anormalidade que poderia revelar alguma disposição. A obtenção de uma tal imagem dupla foi possível graças à violência do pensamento paranoico que utilizou, com esperteza e habilidade, a quantidade necessária de pretextos, coincidências etc., aproveitando para fazer aparecer a segunda imagem que, nesse caso, assume o lugar de ideia obsessiva. A imagem dupla (cujo exemplo pode ser aquele da imagem de um cavalo que ao mesmo tempo é a imagem de uma mulher) pode se prolongar, continuando o processo paranoico, a existência de outra ideia obsessiva sendo então suficiente para que uma terceira imagem apareça (a imagem de um leão, por exemplo), e assim por diante, até a concorrência de um número de imagens que é limitado unicamente pelo grau da capacidade paranoica do pensamento. (1)
Estava formada a ambiência intelectual, bem como as afinidades eletivas para que Lacan passasse a frequentar o grupo surrealista. Não foi apenas a crítica favorável de Dalí à sua tese sobre a psicose paranoica e suas relações com a personalidade. Há também o material biográfico de Aimée [Marguerite Anzieu, personagem central da tese de doutorado de Jacques Lacan], tão importante quanto os trabalhos literários que ela pretende publicar e que Lacan analisa, na esteira da prática da esquizografia.
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1. O Asno Podre, de Salvador Dalí. Artigo publicado no periódico Surrealisme au Service de la Révolution, em julho de 1930.