Em agosto de 2019 a crítica Aracy Amaral escreveu um artigo para a edição #44 da seLecT sobre os desenhos de Tarsila do Amaral (1886-1973), abordando desde seus exercícios cotidianos e registros de viagens, até as elaborações mentais de uma subjacente criação antropofágica.
No momento em que Aracy publicava esse texto, um conjunto de 203 desenhos raros, esboços e estudos, guardados por mais de cinco décadas em uma coleção particular, acabava de ser adquirido por outro acervo privado, a coleção pessoal do artista, galerista e gestor cultural Marcos Amaro. A vantagem, do ponto de vista da fruição pública desse patrimônio artístico, é que as obras foram cedidas em comodato à Fábrica de Arte Marcos Amaro e, ao chegarem ao acervo do FAMA, com danos ocasionados pelo tempo e a falta de cuidados museológicos, as obras foram submetidas a um importante processo de restauração.
Considerados a base formadora do pensamento artístico de Tarsila do Amaral, os desenhos haviam sido vistos em conjunto uma única vez, em 1969, no MAM Rio. Hoje, a coleção volta à luz em Tarsila – Estudos e Anotações, curadoria de Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros, em exibição no edifício histórico que abriga a FAMA no centro de Itu (SP), até 14/3/2021.
Com esse conjunto, que o curador Ricardo Resende aponta no texto do catálogo como “a obra mais importante da Coleção Kogan Amaro”, a FAMA acentua sua função museológica e passa a se chamar FAMA museu. “Assumimos essa condição no começo do ano, antes da pandemia, pensando principalmente no futuro, na responsabilidade social de valorização do acervo, e pelo fato de a minha coleção deixar o caráter privado e ganhar uma face pública”, diz Marcos Amaro à seLecT.
Dos percursos reais às viagens mentais
Datados de 1919 a 1940, os desenhos conduzem o visitante às bases do exercício intelectual da pintora Tarsila. Aponta a curadora Regina Teixeira de Barros, no texto do catálogo, que foi por influência do primeiro professor, o pintor Pedro Alexandrino (1856-1952), que Tarsila adquiriu o hábito de carregar caderninhos de bolso para “anotar, de forma ligeira e sintética, as cenas e os objetos que chamassem atenção”.
Assim, seus primeiros interesses nasceram dos percursos das ruas de uma São Paulo ainda provinciana, no início dos anos 1920: uma moça pensativa, uma menina bebendo água, dois burros, um boi, homem lendo, duas mulheres sentadas, homens de costas apoiados em uma murada, provavelmente jogando conversa fora e vendo as águas do rio passar.
Em outra parede da sala de exposição, estão perfilados os estudos acadêmicos de nus e modelos vivos que, rapidamente, perdem o automatismo das proporções clássicas e começam a ganhar certas intenções mentais, como a perna tesa, afirmativa e estruturante no desenho de uma moça sobre tamborete (1921).
A neutralidade acadêmica é definitivamente abandonada nos estudos de modelos vivos sob a tutela de Léger e de Llote, em Paris, e com Albert Gleizes ela começa a exercitar as composições cubistas. “André Llote seria sua grande escola para a construção e despojamento de seu traço, que passa a ser mais sintético”, aponta Aracy Amaral no texto do catálogo. Desse período, sairia A Negra (1923), cujo estudo em nanquim sobre papel integra a coleção.
Em 1924, durante viagem com o grupo modernista – os escritores paulistas Mario e Oswald de Andrade e o poeta francês Blaise Cendrars – às cidades históricas de Minas Gerais, Tarsila retoma o bloquinho de viagem. Mas agora o registro “documental” dá lugar a representações cada vez mais sintéticas e estilizadas. São fartas as áreas de branco entre os traços únicos que riscam troncos de palmeiras, silhuetas de montanhas, telhados de casarios, torres de igrejas. Data desse mesmo ano uma crônica visual sobre a Revolução de 1924.
Em 1926, quando viaja pro deserto – Egito, Palestina e Grécia –, que o branco e o vazio da pagina ganha mas densidade diante da linha solitária e quase melancólica que delineia templos, mesquitas, pirâmides, ruínas, dunas, litorais.
Aponta Teixeira de Barros que ao longo de 55 anos de trajetória, Tarsila realizou cerca de 1750 trabalhos sobre papel. Mas “entre os trabalhos gráficos produzidos na segunda metade de sua vida, talvez os mais interessantes sejam justamente aquele em que resgatou o vazio e o silêncio existentes em alguns desenhos do fim da década de 1920 e inicio dos nãos 1930”.
O percurso da coleção da FAMA termina justamente quando ganha campo o imaginário de Tarsila, que avança em direção ao seu período antropofágico. Entre os estudos indígenas (1924-25) e os panoramas do deserto (1926), surgem os enigmáticos bichos antropofágicos e os estudos para figurinos de um balé que não se realizou, mas que produziu seres imaginários extraordinários, nomeados posteriormente por Aracy Amaral. “Eu mesma intitulei de Bicho Pernilongo, Mulher Azul (…), como uma forma de identificação, todos enumerados devidamente para a exposição retrospectiva por mim organizada, em 1969, no MAM do Rio de Janeiro”, escreveu Amaral no texto da seLecT.