“2020: roteiro de Stephen King e direção de Quentin Tarantino”. O texto, hipotético letreiro de um filme-catástrofe ou da ficção distópica em que as cidades de todo o mundo foram transformadas pelo coronavírus, foi uma ação do coletivo @projetemos sobre a fachada de um conjunto habitacional de Recife (PE). Essa foi a capa da seLecT #47, produzida nos três primeiros meses da pandemia da Covid-19, desde o frágil abrigo de nossas casas tornadas epicentros de cidades esvaziadas.
Com colaboração de Giselle Beiguelman (editora convidada), Helena Cavalheiro, Christian Dunker, Nelson Brissac, Ana Leticia Fialho, Raphael Escobar e Paul B. Preciado, essa edição dedicada à cidade marcou o momento crucial de mudança de paradigmas e referenciais da vida urbana e da vida na Terra. “Já é possível dividir a vida entre A.C e D.C? Antes e depois do coronavírus?”, perguntava-se Beiguelman no primeiro texto da série Coronavida, publicada na íntegra no site da seLecT. “Ninguém sabe quanto tempo viveremos no regime de exceção da pandemia, se meses ou anos. O fato é o o ‘corona’ é pra lá de contemporâneo, transformado em cotidiano o panorama mais sombrio do futuro da cidade”.
Dunker engrossava o coro, escrevendo sobre as pestes e as guerras na história da pintura. Preciado sobre os novos hábitos de todas as noites ir para a varanda aplaudir e gritar com os vizinhos e depois voltar pra sala pra conversar com os pais por videoconferência. E Fialho sobre o iminente colapso cultural sob a pandemia. A convite da revista, Escobar, Ronald Duarte, o Grupo Contrafilé e o coletivo de arquitetos Al Borde, do Equador, conceberam projetos para uma cidade após o coronavírus. “Direito à loucura”, “Direito à inadimplência”, evocam as faixas de Escobar.
As relações paradoxais entre a casa e a rua, expressos em trabalhos artísticos realizados antes da pandemia; e a eclosão das estéticas de protesto social em escrituras urbanas completam o dossiê.
Antes do coronavírus, havíamos editado uma revista sobre a fome, a vontade de comer e a vontade de um direito fundamental na Constituição Brasileira: o alimento. Em 2019, antes da pandemia, quando a necropolítica ainda não tinha saltado dos livros de Achille Mbembe e tomado o corpo dos brasileiros, já tínhamos no poder um presidente que negava a fome no Brasil e confirmava o que já sabíamos: o fato de nunca ter assistido a um filme de Glauber Rocha. Em Coluna Móvel da edição #46, Luiz Carlos Oliveira Jr., professor da ECA USP, discorre sobre como o alimento, desde Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) até Bacurau (2019), é uma forma de resistência política no cinema brasileiro. Já em texto de Leandro Muniz, a série escultórica de Débora Bolsoni que tensiona elementos da construção civil e da confeitaria é contextualizada no âmbito de uma discussão sobre as relações entre alimento e gênero; gosto e classe social.
O D.C (depois do coronavírus) ainda não chegou. Mas a edição #48, dedicada a escanear o poder e a perversidade dos algoritmos, também coeditada por Giselle Beiguelman, apontou para o lugar em que habitamos hoje. Naqueles últimos meses de 2020 nos dedicamos, com a ajuda de Tarcizio Silva, Adam Harvey, Natalia Lavigne, Christiane Paul, Marcela Vieira, André Fischer, Ulises Mejías e Vitoria Cribb, a tentar descolonizar algoritmos, driblar os rastreamentos de dados, decifrar a matemática moral, cooptar a performatividade calculada da inteligência artificial e repensar os códigos abertos do que um dia foi chamado de net art. A linguagem é um vírus, já dizia Laurie Anderson.


