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Zimar, Sem título, da série Careta de Cazumba (2022-2024) [Foto: Estúdio em Obra]
Postado em 17/01/2025 - 5:52
Termômetro: 38º Panorama da Arte Brasileira
Do calor extremo à falta de ebulição, a variação de temperatura entre as obras de Mil Graus

Dez dias depois do registro da temperatura mais alta do ano em São Paulo, deu-se a abertura da 38ª edição do Panorama de Arte Brasileira, um dos salões de arte contemporânea de maior prestígio do país. Com as marcas de 35,1°C na capital e 41°C em Valparaíso, no noroeste paulista, o dia 24 de setembro de 2024 funcionou como prólogo do recorte eleito pelos curadores Germano Dushá, Thiago de Paula Souza e Ariana Nuala para o panorama, intitulado Mil graus. A mostra percorre processos contemporâneos considerando a condição de um calor extremo, absoluto e não localizável, capaz de dissolver formas e ideias. Busca, nas palavras da curadoria, elaborar “criticamente a realidade atual do país sob a noção de ‘calor-limite’ — uma temperatura em que tudo se transforma”.

Nesse caldeirão fervilhante, trinta e seis nomes de todo Brasil integram um grupo diverso que, se por um lado propõe uma dissolução das fronteiras e a subsequente troca dialógica entre suas práticas, por outro destaca artistas e coletivos de grande circulação no mercado e no circuito institucional. Figuras de longa trajetória, como Solange Pessoa, dividem a sala com artistas em meio de carreira, como Paulo Nimer Pjota e Advânio Lessa. São os jovens, contudo, que ganham maior protagonismo na mostra: com uma forte presença da geração zennial a seleção inclui nomes como Gabriel Massan, Marina Woisky e Marcus Deusdedit. A presença de artistas sem vínculos com grandes galerias ou pouca inserção em museus, como Rafaela Kennedy e Zahỳ Tentehar, é exceção.

Com um título ambíguo que remete tanto a um dado científico quanto socioambiental, e à sabedoria da ginga, para Dushá, Mil graus “invoca a ciência, mas também a poesia e a transcendência”. Em seu texto, o curador faz referência às queimadas que devastam a biodiversidade brasileira, às erupções vulcânicas e às transformações de corpos submetidos a extremos, sem se fixar em nenhuma dessas linhas como eixo central, mas explorando suas interseções, no que ele chama de uma “poética do calor”. Já Ariana Nuala contrapõe choques entre visões oriundas de cosmologias ocidentais e não ocidentais, defendendo uma leitura multifacetada do fogo enquanto símbolo de vida e morte. Nas palavras da curadora, “o fogo, portanto, não é apenas destruição, mas um meio de renascimento e regeneração, no qual cada faísca carrega consigo o poder de reconfigurar realidades”. Por fim, Thiago de Paula propõe o calor como métrica de dissenso. O curador, entretanto, é sucinto em seu enfoque.

Ana Clara Tito, Enxame (SH), 2024. [Foto: Estúdio em obra]

Mil grau pelando

Partindo dessas escolhas, a edição atual do panorama reservou aos curadores uma mudança radical: a transferência do local de exposição do MAM-SP para o MAC-USP, em virtude das reformas em curso no primeiro. O impacto é sentido logo na entrada da mostra: o visitante é interceptado no salão – um extenso corredor – pelos seres de pedra de Ana Clara Tito. Ora inclinadas umas sobre as outras, ora em movimentos de expansão coreográfica livre, esculturas da série Enxame (SH) reivindicam o espaço, quase expulsando quem tenta circundá-las. Uma pena, pois trata-se de uma instigante e recente investigação de Tito, que faz despontar da massa de concreto fotografias e rostos que, aqui e ali, encaram o público, revelando-se imóveis na riqueza material de sua composição. Ao lado, Marcus Deusdedit apresenta uma instalação que conecta mobiliário, brutalismo e bioconstrução corporal para explorar noções de performatividade, design e racialidade. Gesto surpreendente que expande a reflexão sobre os objetos e as questões de classe já abordadas pelo artista anteriormente, rejeitando a variabilidade e a serialização que marcam a produção contemporânea.

A chapa esquenta no lado direito da mostra: em tons de vermelho, preto e laranja, trabalhos de Paulo Nimer Pjota, Jayme Fygura, Noara Quintana e Melissa de Oliveira expõem, de forma plural, o ápice da “poética do calor”. Pjota opta por apresentar uma composição que lembra um horizonte em brasa, marcado por uma ecologia habitada por seres imaginários — uma fusão entre referências da história da arte pela via da iconografia japonesa e a estética visual Y2K dos youkais, pokémons e entes extraterrenos. Sua composição em óleo, têmpera e acrílica explora o melhor do meio pictórico, provocando associações com o grafite urbano. Quintana, por sua vez, suspende no teto uma estrutura semelhante a um fóssil-lava em plástico e cores neon, compondo uma metanarrativa sobre os materiais e seus processos de transformação: do petróleo à bugiganga de R$1,99. Jayme Fygura aponta as arestas e belezas da mitologia criada em torno de sua persona, conhecida pelas andanças nas ruas de Salvador. Em uma montagem que combina pinturas e carapaças, o desejo de transgressão nas largas pinceladas se conecta à metamorfose de seus impactantes protótipos de ferro enferrujado. O ar, já rarefeito, segue nas fotografias de empinadores de moto (o famoso “grau”) capturadas por Melissa de Oliveira. Embora a semelhança com as fotografias de Bárbara Wagner possa ser sugestiva, a noção de pertencimento e autorrepresentação indica novas maneiras de produzir imagens da periferia e outras referências na produção de Melissa.

O agrupamento tem também seus momentos brandos e, volta e meia, alguns deslizes: ainda que José Adário dos Santos seja bem apresentado em uma configuração que valoriza a qualidade de sua produção, a falta de uma defesa discursiva não justifica a distinção de suas peças em relação às de outros artistas de poética semelhante, como Ayrson Heráclito (embora este já tenha participado da Bienal de São Paulo – um dos critérios de recusa do panorama) e Mestre Didi (também recusado por se tratar de um artista falecido), ou mesmo àquelas dos ferreiros de barracões de candomblé que dedicam a vida à produção de totens sagrados. Antonio Tarsis seduz pela engenhosidade do mecanismo de sua instalação, mas a cenografia em metal que cerca o carvão dissipa rapidamente a fissura do visitante com o truque, que não atém a atenção por mais de três gotas em ebulição. É de se lamentar, também, o posicionamento das impactantes esculturas em cerâmica e lã de Solange Pessoa que, relegadas ao canto da sala, perdem a oportunidade de convidar o público a explorar seus sulcos e volumes. Laís Amaral e Marlene Almeida são um caso à parte, que comentarei adiante.

Um elefante na sala de espera

Gabriel Massan, Baile de terror (2024) [Foto: Estúdio em Obra]
Para aqueles que seguem pela extrema direita da sala, uma estrutura em forma de aquário abriga a instalação Baile do Terror, de Gabriel Massan. Composta por telas de diferentes tamanhos e um mobiliário que interpreta o universo digital, a obra situa os personagens de Massan em um baile funk, construindo um ambiente imersivo onde o passinho, a sonoridade e a tensão das disputas territoriais se fundem para instigar um exame acerca do imaginário do Terceiro Mundo. Esse tema é, aliás, retomado com grande sofisticação pelo artista, que, ao mesmo tempo em que ressalta a dimensão do olhar “estrangeiro” para países do hemisfério sul, o complexifica ao propor a criação de novos mundos em que os paradigmas coloniais não desvanecem, mas passam a ser minimamente questionados.

Ainda que a sala construa de maneira exemplar a ambientação de Massan — superando sua exibição na Pinacoteca do Estado de São Paulo em 2024 (a maior até então em território brasileiro) –, a disposição de obras que habitam o digital, como Baile do Terror e a instalação de Jonas Van & Juno B, evidencia um problema recorrente, arrisco dizer, em todo o circuito artístico contemporâneo brasileiro: a resistência em abordar práticas digitais senão como um apêndice. Se, em países como Inglaterra, Estados Unidos e Portugal, a produção digital contemporânea já não é mais um desafio, mas parte inerente da cena artística, aqui ela figura como uma narrativa escrita em rodapés. É sintomático que ambas as proposições apareçam isoladas, colchetes distantes nas extremidades da equação do 38º Panorama, sem estabelecer qualquer diálogo com os demais trabalhos. Com exceção da apresentação da obra de Marcus Deusdedit — que integra a virtualidade à uma peça física de igual importância para construir sua poética —, o panorama, infelizmente, não supera essa condição.

Um moquém em banho maria

O lado esquerdo da mostra mergulha em poéticas e discussões de povos autóctones, com do grupo étnico Akroá-Gamella dando o tom de abertura. Um grande mural reúne documentações da experiência do grupo com os artistas Thiago Martins de Melo e Gê Viana e os curadores durante o ritual do Bilibeu — rito sincrético para a manutenção das crenças e a autoafirmação de um povo que já foi considerado extinto. Rop Cateh, a alma pintada em terra de encantaria dos Akroá-Gamella, foi a entidade tomada como ponto central para conversas e reflexões conceituais e artísticas do panorama, tangenciando ações coletivas e propositivas a partir da interação entre os processos dos dois artistas convidados. O resultado é de extrema força, pois utiliza a qualidade sincrética da ação como elemento de reflexão sobre a indistinção entre artista e coletividade, propondo, em seu lugar, o vestígio do ato, materializado em colagens, pinturas e cenas captadas em vídeo.

O gesto provocativo torna-se quase esquizofrênico frente à sala contemplativa de Lucas Arruda, posicionada de fronte ao mural. Pensada, talvez, como estratégia para conferir uma imanência espiritual às paisagens monocromáticas do pintor na parte externa do espaço, que dialogam com a comunidade Akroá-Gamella, tal proposta se dissolve quando se adentra o local que abriga o restante das telas e convida à fruição meditativa, imersa no cubo branco. O ambiente revela, ainda, a surpresa de uma outra faceta de Arruda, mais vibrante e formalmente sintética. Encerrar o artista em uma redoma compromete sua presença no 38º Panorama. Em um desejo de exultação que incomoda, parece sintoma máximo de uma escolha alinhavada por um flerte irreparável com o mercado.

Rebanhos do céu, 2008, acrílica sobre tecido, de Ivan Campos. Acervo da Assembleia Legislativa do Acre (ALEAC) [Foto: Estúdio em Obra]
A saída do recinto resguarda o encontro com dois dos melhores trabalhos da mostra: Zahỳ Tentehar hipnotiza o espectador em um vídeo de dois canais em que o binômio ancestralidade/tecnologia atua como faces de um mesmo desejo: a autoficção enquanto tática de reparação de um trauma colonial. A montagem e o uso inventivo de filtros dentro do cenário ruína-scifi da artista impressionam e preparam o terreno para as fotografias amazônidas de Labô Yong e Rafaela Kennedy, que revelam o calor e a magia de corpos-bioma, exuberantes em sua sintonia. O estado de torpor conduz o olhar para a obra de Ivan Campos: uma grande tela produzida em tons de verde, amarelo e azul que dá ares de monocromo e apresenta uma anatomia da floresta. Nela, folhas, raízes e animais se fundem em uma pincelada rizomática, sem início nem fim. Torna-se um corpo estranho na miríade de processos hipercontemporâneos abertos pelo panorama e, por isso, extremamente interessante.

Há outros dois corpos estranhos nessa seção, mas por conta de seus posicionamentos e apresentações. O primeiro deles é Zimar, que ganhou recente projeção ao apresentar suas “caretas”, máscaras feitas ora em madeira, ora em capacetes de moto, ora em uma diversidade material de restos, cujo resultado é utilizado como um instrumento ritualístico na festa do boi maranhense. A beleza desconcertante de suas peças é apresentada em uma configuração distinta, apoiada em uma estrutura de um pentagrama ampliado, toda em ferro. Não foram poucos os comentários que questionaram a mão pesada da expografia, acusada de alterar o modo de fruição da obra. Sigo, neste caso, em defesa da curadoria e de sua proposta. Devemos lembrar que o cubo branco é uma invenção e, mesmo para Zimar, a máscara é um portal para uma dimensão fabulativa, tecida entre o corpo dançante e o objeto que intimida e zomba da nossa realidade. O aparato expográfico é de extrema elegância e confere dinamicidade às esculturas.

Já Frederico Filippi apresenta a instalação Moquém – Carnes de Caça, onde peças de tratores incinerados e derretidos em levantes anti-garimpo na região amazônica, dispostas sobre uma estrutura em grid de ferro, denunciam a dimensão extrativista da economia brasileira. Ainda que o artista enderece relações entre tecnologias indígenas, seus atos de revolta e as imagens produzidas sobre povos originários – como é o caso das gravuras de Hans Staden de indígenas antropófagos –, a falta de uma defesa discursiva não convence o no tête-à-tête. Causa maior impacto o segundo trabalho de Filippi, Arco, reverberação artística de sua pesquisa de mestrado, que investiga o “arco do desmatamento” a partir uma perspectiva material e histórica, apresentando o choque como proposição estética. Ao lado, também em barras de ferro, o trabalho de Joseca Mokahesi Yanomami encerra o núcleo. Aqui, o artista se destaca mais pelas fichas de título – expostos em uma mesma hierarquia que os trabalhos – do que pelo desenho em si, uma iconografia amplamente vista nos últimos anos no circuito paulistano.

Amoré, 2023, de Labô Yong & Rafaela Kennedy. Coleção das artistas [Foto: Divulgação/MAM-SP]

Nem calor nem frio: zero grau pra mim tá perfeito

Vistas das obras de Mestre Nado, Maria Lira Marques, Paulo Pires de Oliveira, Dona Romana, Sallisa Rosa, Rafael RG, Marlene Almeida, Laís Amaral e Marina Woisky no 38º Panorama da Arte Brasileira: Mil Graus, do Museu de Arte Moderna de São Paulo. [Foto: Estúdio em obra]
Não há meme mais adequado para o senso de apatia que encerra o 38º Panorama que o famoso tweet de Ângela Bismarchi. Ainda que trabalhos excepcionais, como os de Rebeca Carapiá e Marina Woisky, integrem o núcleo, suas disposições claustrofóbicas, por vezes caóticas, dificultam a fruição de obras que demandam e fabulam o próprio tempo. Carapiá apresenta Flutuantes, uma escultura em ferro e cobre que reconfigura a linguagem mediante o cruzamento entre escrita, gesto e pictografia, mas é eclipsada pela peça de Noara Quintana: um grande satélite em látex e ferro que orbita o baixo pé-direito da galeria de forma desengonçada. Uma lástima, pois o desenho sobre o imaginário contemporâneo do espaço sideral que recobre o objeto brilha, literalmente, em diferentes configurações. Enquanto isso, Woisky exibe o melhor de seus processos em esculturas que processam imagens de baixa qualidade de ornamentos clássicos e ilustrações científicas, tensionando a velocidade de transmissão desses arquivos em aparições concretas e pesadas. Dispostas em uma configuração quase cênica, essas peças sofrem com a ausência de espaço e as menores encontram dificuldade ao tentar circundar os pilares do museu.

A busca por um estado de dissolução apresenta sua versão marota no centro da sala, onde Mestre Nado, Maria Lira Marques e Paulo Pires de Oliveira dividem uma estrutura que privilegia os pontos em comum das esculturas, reduzindo o interesse do visitante por suas particularidades. Sallisa Rosa faz uma aparição ao fundo com peças da série Veneno, escarificações produzidas em corpos de barro circulares. A artista, que vem impressionando com propostas arrojadas em instituições como a Pinacoteca do Estado de São Paulo, a Bienal de Arte Paiz, na Guatemala, e o Audemars Piguet Contemporary, aparece de maneira comedida em uma série amplamente exibida em feiras de arte.

Marlene Almeida, Rafael RG e Laís Amaral retornam ao fim da mostra em proposições ofuscadas pela expografia. No caso de Amaral, as obras não são contextualizadas pelo texto, o que dificulta a percepção de sua escolha pela curadoria. As obras de RG e Almeida, por sua vez, parecem menos sofisticadas formalmente em comparação à profusão de elementos do trio de esculturas ao centro e à plotagem fotográfica do sítio Jacuba. É nessa geografia que as peças de Dona Romana resplandecem em seu propósito espiritual e material, embora a fotografia única e a ausência do texto – inerente à exposição que busca ares de galeria – não consigam atingir plenamente esse objetivo.

Jonas Van & Juno B, Visage, 2024. 38º Panorama da Arte Brasileira: Mil graus [Foto: Estúdio em Obra]
A falta de ebulição que marca o fim do percurso é subitamente interrompida pela obra de Jonas Van & Juno B, logo após a parede de Dona Romana. Em Visage, a figura do pavão misterioso, célebre em aparições de cordéis nordestinos, instaura uma suspensão temporal delineada por processos autorreflexivos. No limiar entre uma experiência etérea e a morfologia digital, o vídeo convida a uma jornada extracorporal que inebria, ancorado em um sofisticado texto em que o subjetivo e o coletivo, marcados por traumas da colonialidade, configuram uma cicatriz sobre a qual uma nova pele se forma, conservando a memória do passado. A suavidade da proposta contrasta com a presença de peças de carros, elemento deveras dispensável, pois cristaliza uma percepção formal que a narrativa não defende.

Um líquido a escorrer sob o calor absoluto

Adriano Amaral,-Sem título (2024) no 38º Panorama da Arte Brasileira Mil graus [Foto: Estúdio em Obra]
A experiência do 38º Panorama permite algumas surpresas que se estendem para além da sala principal. No térreo do MAC-USP, a instalação octogonal de Adriano Amaral atrai o visitante já no entremeio de sua única entrada. Ao centro, um recipiente em aço inox contém um líquido viscoso e leitoso do qual submergem crânios humanos, enquanto o silicone escorre por suas bases. Nesse movimento repetitivo e sem função, nenhuma carapaça se condensa sob a superfície, deixando entrever as cavernas oculares de um memento mori fabril e plastificado. Se o ar frio e estéril que preenche o recinto envolve esta e outras experimentações tridimensionais do artista – uma “natureza sem nome” em que o humano parece malquisto –, isso só é possível graças a níveis de temperatura e pressão tão altos por anos a fio que são capazes de decompor matérias orgânicas para a criação de um derivado do petróleo. Optando por um caminho onde o calor não é representado ou mesmo reificado, Amaral impressiona pela complexidade da proposta, que é, sem dúvidas, o melhor trabalho desta edição.

Ao fundo, vestígios do trabalho de Davi Pontes – uma plataforma losangular de três níveis­ – e uma impressão lenticular do grupo cênico MEXA integram a coletiva, ainda que com pouca força. O repertório coreográfico de autodefesa de Pontes adquire uma dimensão “aurática” de objeto artístico distante do mundo, destacado por uma base que o eleva, removendo a possibilidade de ocupação e diálogo com outros artistas e enfraquecendo o potencial desestabilizador da performance no espaço expositivo. O grupo MEXA, por sua vez, parece ligeiramente deslocado da discussão geral. Ainda na linguagem performance, o grupo de “bate-bola” Tropa dos Gurilouko abrilhanta a seleção, propondo uma procissão ao redor do museu durante a abertura em trajes esvoaçantes e intimidadores, pontuando a força do carnaval no descondicionamento dos corpos. Por fim, Advânio Lessa e Solange Pessoa dão as boas-vindas aos que entram ou o adeus aos que se despedem da experiência do 38º Panorama. São, sem dúvida, boas escolhas para esta memória.

Um calor invade o MAC-USP

É tentador assimilar a 38ª edição do Panorama a uma manifestação integralmente relevante em sua seleção de nomes, em grande parte já incorporados pelo circuito contemporâneo, ou mesmo refutar sua proposição em virtude das contradições que ela própria aponta. No entanto, é indiscutível que a proposta de Dushá, Paula e Nuala é provocativa, principalmente em sua veiculação e comunicação digital, que fogem dos tons vermelhos que o título alude em favor de um verde neon, brat. Com uma publicação arrojada, um ambiente tridimensional e um site que adota uma linguagem hiperdigital e distorcida, a exposição física parece, curiosamente, tímida, optando pelo uso moderado do verde saturado na expografia, poucos textos e agrupamentos clássicos (como, por exemplo, o núcleo indígena, que é concentrado em um único ponto em detrimento de uma aparição mais espalhada e heterogênea).

Em conversas, ouvi que a exposição era “difícil de circular, mas bonita em fotos no Instagram”. É verdade, o campo de fruição de arte mudou. Se a presença física já não basta, a dissolução entre as esferas terrenas e virtuais hoje é um caminho sem volta. De toda forma, o 38º Panorama resolve boa parte de seus problemas no segundo âmbito. Talvez, em virtude do grande desafio que é ocupar as salas do MAC-USP (lembremos que a proposta original considerava o MAM-SP como espaço expositivo) ou, talvez, pela presença de três curadores de notável projeção nas redes sociais. Há questões impossíveis de serem contornadas, mas a expografia carece da mesma robustez da proposição polissêmica  de Dushá no fim de seu texto curatorial: “Mil graus é pulsão de vida. É o que irradia. (…) É a combustão que devora. É ruptura e reinvenção. (…) é o calor dentro do calor”.


Lucas Albuquerque é critico de arte e curador, bacharel em História da Arte e mestre em Processos Artísticos pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro