Este ano resolvi começar um pequeno projeto arquivista, que é colecionar textos críticos sobre a Bienal de São Paulo publicados em veículos de grande circulação. Acho que isso pode esclarecer muita coisa sobre a prática da crítica de arte no Brasil pois a abertura de uma bienal é uma época em que jornais como a Folha e o Estadão abrem espaço para vários textos sobre o tema, ao contrário do que acontece quando se critica um filme ou um livro, em artigo único, ou quando se noticia uma exposição de arte de menor porte.
A Bienal acontece num tempo estendido, e as críticas vão sendo publicadas sequencialmente à medida em que os estudiosos assimilam as propostas da mostra ou reagem enrijecidos por seus pressupostos sobre como deveria ter sido a curadoria, quais artistas deveriam ter sido chamados, qual a função de uma bienal. Em especial, o jornal O Estado de SP publicou durante a vigência da Bienal textos de Rodrigo Naves, Aracy Amaral, Sheila Leirner, Daniela Bousso, Antonio Gonçalves Filho, Maria Hirszman, Camila Molina, Felipe Chaimovich e Paulo Miyada. A Folha de SP trouxe um texto de Fabio Cypriano, uma entrevista de Cypriano com Jochen Volz e um texto de Ferreira Gullar. E o que está sendo feito desse espaço excepcional que grandes jornais oferecem à crítica de arte a cada dois anos?
Antes de comentar o tom geral desses textos, lanço a pergunta básica que qualquer autor deve se fazer antes de escrever: para quem se escreve um texto crítico sobre a Bienal de SP? Considerando que os textos que analisarei foram publicados em grandes jornais, seja na versão impressa ou em blogs, é de se supor que o texto seja escrito para um público de especialistas e não especialistas. Ao publicar um texto no Estado de SP sobre a Bienal, o crítico não deveria supor que está falando só para seus pares. Dentre os milhares de leitores de grandes jornais há aqueles que não trabalham com arte, não colecionam arte, e simplesmente querem entender a relevância de uma bienal, e quem sabe informar-se antes ou depois de uma visita à mostra. Imaginar que só quem leria uma crítica à BSP seriam pessoas já incluídas no sistema da arte é um cenário triste e que justamente a crítica deveria combater. É preciso acreditar que não fazemos arte e textos sobre arte apenas para nós mesmos e que obras e textos podem atravessar as grossas camadas de condicionamento cultural e repercurtir no leigo.
Nos círculos especializados, falamos o tempo todo sobre arte contemporânea e transformação, sobre o potencial político da arte contemporânea – que mais do que do ativismo ou da arte panfletária, advém do poder da arte em alterar nossa capacidade de conhecimento do mundo e de presença no mundo, ou seja, advém da capacidade da arte em esculpir novas subjetividades – mas, como argumentarei, vários dos textos dessa pequena coleção realizada acerca da crítica à 32ª Bienal a acusam de ser ideológica, de apresentar apenas experimentos, de querer transformar a sociedade. Chamam de “hortinhas” ou de “lanchonete” obras que propõem uma expansão na definição de arte, para além do objeto a ser contemplado e acusam a Bienal de privilegiar o discurso em detrimento da forma. A questão então é lidar com expectativas de que a arte contemporânea possa interferir em processos de subjetivação e, ao mesmo tempo, sanar a fome de forma imediatamente reconhecível e compreensível, que se imponha eficientemente, rapidamente, acima do discurso curatorial.
Não é impossível conciliar o desejo de que a arte contemporânea transforme as subjetividades -poder político da forma- e que ao mesmo tempo seja sensorialmente impactante. Mas é impossível acreditar em um poder transformador da arte se exigirmos que ela acione apenas as capacidades cognitivas que já temos bem exercitadas. Não é possível exigir transformação a partir da manutenção das coisas como sempre foram. Assim, transformar subjetividades e ao mesmo tempo acionar o sensível mais do que o discurso exige que estejamos dispostos a lidar com uma nova relação com o sensível, passo importante para estabelecer novas relações sujeito-mundo e assim incitar o surgimento de um novo sujeito político.
Para deixar mais claro este argumento sobre o poder político da forma basta pensarmos o quanto a representação figurativa ocidental esteve atrelada à perspectiva linear desde o século XV, e o quanto este padrão de representação supõe um sujeito separado do mundo, olhando por uma janela para um ponto fixo para o qual todas as linhas convergem. Seguimos com essa forma até nas imagens feitas atualmente por aparelhos de avançada tecnologia, reforçando o modelo de sujeito clássico estabelecido na filosofia no século XVII. Assim perdemos a oportunidade de representar o mundo como simultaneidade, teia de linhas, movimento, verso e reverso, e tantas outras formas que poderiam alterar a representação da paisagem e assim alterar possibilidades de pensamento.
Ora, obras que oferecem novas formas de representação do mundo estão nesta bienal (Rosa Barba, Rachel Rose, Pierre Huyghe, para citar alguns) mas parece que Aracy Amaral, Ferreira Gullar e Rodrigo Naves preferem a forma já conhecida. Apesar do meu profundo respeito por esses críticos, fundamentais na minha formação com textos inesquecíveis como A Forma Difícil, de Naves, Arte para quê?, de Amaral, e toda a produção teórica sobre o neoconcretismo de Gullar, – e talvez justamente por isso- não posso deixar de comentar as abordagens secas e críticas apressadas com que reagiram à 32ª Bienal em textos que desestimulam o leitor a pensar sobre arte contemporânea para além de categorias mais adequadas à arte moderna.
Naves afirma em seu texto publicado no Estadão que ainda não surgiu um sujeito social tão forte quanto o proletariado para abarcar a tarefa de construção de uma sociedade mais justa e que, após o fracasso da União Soviética, busca-se esse novo sujeito na juventude, nas minorias ou na arte, sem qualquer sucesso. Citando Naves: “Ultimamente, os artistas -sobretudo artistas visuais- vêm tentando preencher essa ‘lacuna’, conduzidos por novos Timoneiros, os curadores.” E segue menosprezando a fala do curador Jochen Volz a respeito do conceito curatorial que envolve ecologia, narrativas sobre gênero e descolonização, educação e cosmologia. Diz Naves: “Não é de estranhar que não haja uma palavra sequer sobre arte nessa resposta. As artes visuais, embora não nomeadas, devem se constituir na nova panaceia universal, a chama que iluminará o destino dos povos.”
E eu pergunto: o que há de errado em as artes visuais contemporâneas se constituirem a partir de reflexões sobre os principais temas discutidos hoje na filosofia e na sociologia, tais como o desastre ecológico, a episteme que nos aparta de uma compreensão cosmológica de mundo e a necessidade de novas narrativas contestadoras da distribuição de poder? De onde mais viria a transformação, talvez não a transformação da sociedade e formas de produção, mas transformação das formas de compreender o mundo?
Mutações da arte advêm de pesquisas com a forma plástica que ocorrem simultaneamente a alterações das formas de pensar. Ou seja, a arte tem sim uma ligação com o que Naves chama de panaceia (um remédio que tudo cura), que iluminará o destino dos povos já que cada mutação da arte gera signos de vida, especificamente de transformação da vida. E esses signos balizam (ou iluminam, se Naves assim o prefere) uma nova forma de compreender vida, sociedade, conhecimento, enfim, o destino temporário dos povos que hão de vir e mudar novamente. A arte é cura de todos os males relacionados à insistência na conservação de formas -plásticas, sociais, econômicas- pois é o abrigo do pensamento diferente da norma. Coerentemente, várias obras da 32ª Bienal trabalham com a ideia de cura, como a oca de Pia Lindman ou o restaurante de Jorge Menna Barreto.
No entanto, o texto de Rodrigo Naves insiste na conservação das formas e reforça o senso comum de que a Bienal é bobagem ideológica: “Faltou arte, que é onde realmente nossas certezas são postas em xeque. Ideologias são tigres de papel”. Com isso, o autor afugenta o público de uma possibilidade de pensamento.
Escrevendo algumas semanas depois de Naves no mesmo jornal, Daniela Bousso ensaia uma crítica a textos anteriores publicados na imprensa sobre a 32ª Bienal, mas encaminha a discussão para a análise da viabilidade financeira de exposições de arte no Brasil. Em um país em que a importância dada à cultura fica vários degraus abaixo da importância dada às finanças, o texto de Bousso reforça uma compreensão economicista de mundo ao discorrer sobre algo que o leitor certamente entende, as cifras, os patrocínios, a necessidade de mecenato: mais do mesmo assunto que o leitor encontra o tempo todo. Como então oferecer a esse leitor leigo em arte e em filosofia a possibilidade de conhecer uma nova camada da existência, não numérica e não indexada por fatores de correção? O que escrever para este leitor, ou seja, qual a função da crítica de arte publicada em um grande jornal?
Eu gostaria de sugerir que um texto crítico desperdiça uma oportunidade ímpar se não fornecer algumas premissas básicas da arte contemporânea, se não apresentar a arte como veículo de conhecimento e experimentação com o pensamento, se apenas usar o espaço como campo de batalha entre protagonistas do sistema da arte, caso se limite a emitir a opinião do autor sem construir no texto uma ponte entre o leitor e o potencial reflexivo da arte.
Este leitor de um grande jornal também está bastante acostumado ao humor fácil, que foi o estilo de texto que Sheila Leirner escolheu para fisgá-lo no artigo Procura-se Incerteza Viva ou Morta. Leirner constroi uma personagem fictícia chamada Rosalinda Fumarola que é crítica de arte, curadora e gastrônoma. A caricatura da mulher crítica de arte é desenhada por Leirner enfatizando traços de futilidade e de preconceito em relação a mostras em que “o discurso crítico se sobrepõe às intenções e à produção real dos artistas”. Rosalinda afirma preferir ir à Pina (Pinacoteca) tomar café com pão de queijo do que ir à 32ª Bienal. Acusando a função curatorial, o texto em tom jocoso qualifica o curador Jochen Volz como “muito esforçado” por ler tanto sobre “tudo menos arte”.
“E o atual curador, esforçado e deslumbrado com tanta teoria, algumas passageiras -de pura moda- será que ele sabe que ninguém, olhando a exposição, vai pensar nisso tudo, jamais? Que diante das imagens, esse palavrório todo sempre fica perdido? Que se a Bienal for ruim e chata e não trouxer por si alguma reflexão, nenhum discurso no mundo poderá salvá-la?”.
Lendo apenas este texto, é difícil dizer se Sheila Leirner construiu a personagem para ridicularizar a Bienal ou para ridicularizar as críticas à Bienal, mas é fato que a dubiedade não é saudável para o leitor leigo, não forma pensamento, não ensina absolutamente nada sobre arte contemporânea. Quem deveria propor alguma reflexão é exatamente o texto de Leirner, desperdiçado em um exercício ególatra -mas falado pela boca do personagem- de ridicularização de um colega. Novamente, o leitor conclui que não vale a pena ir à Bienal e que curadores são “bo-bos”, bourgeois boêmios, segundo o alter-ego de Sheila Leirner. A expressão francesa em português lê-se como bobo, tolo, ingênuo.
Para Rosalinda Fumarola, a função de uma bienal é “servir como um barômetro da situação artística do planeta e partir não apenas da reflexão sobre os caminhos artísticos, mas sobretudo da prática mesma de torná-los compreensíveis para o público. Esta é a vocação das bienais”. Leirner retoma esta ideia da bienal como barômetro da produção mundial em texto publicado na véspera do encerramento da mostra, também no Estadão, dessa vez assinado por Sheila Leirner mesmo, e não pela personagem inventada. Reiterando a argumentação de Fumarola de que esta foi uma bienal baseada no discurso, Leirner acrescenta que a mostra “induziu como a fantoches” artistas comissionados a produzir obras que seguissem o conceito curatorial. O oximoro “artista induzido” nos faz duvidar de outra sentença do último texto de Leirner: “Hoje, sabemos perfeitamente o que é arte contemporânea.”
Talvez Leirner esteja procurando um barômetro não da situação artística do planeta e sim do mercado de arte, o que poderia encontrar facilmente em feiras de arte já que não está interessada na dicussão de caminhos para a arte e sim “da prática mesma”, ou seja, do produto. Mas até de almejar apenas o produto as obras da Bienal são então acusadas por Rosalinda Fumarola quando a personagem sugere que exista um oportunismo de artistas engajados com arte e reflexão: “Você expõe ali [na Bienal] uma sucata gigante invendável, fica famoso e já pode começar a fazer sucatinhas mais amenas, em série, como trabalho alimentar. Que eu saiba, o mercado e a instituição – organizações cujos atributos são a “pura certeza” jamais são dispensados”.
No lugar de uma sucata gigante invendável talvez Leirner prefira uma homogeneizante “Grande Tela”, que apague diferenças e sutilezas entre a produção de vários artistas, este sim um gesto arriscado de substituir a obra do artista por uma obra do curador. Mas não é possível saber ao certo a que veio a criação da personagem Fumarola, que se mantém em um tom de humor que ridiculariza o sistema da arte e os discursos curatoriais, e obscurece a discussão sobre os caminhos da arte contemporânea.
Aracy Amaral parece concordar com Leirner e Naves quanto a um excesso de discurso nesta Bienal e ao mesmo tempo em que critica a superficialidade intelectual da sociedade dos games, defende uma relação rápida com a arte: “Outro dado que creio que ainda não se reconheceu é que um vídeo a ser apresentado em uma Bienal deve, obrigatoriamente, ser de “timing” dinâmico, 2-3 minutos no máximo. Pois trata-se de espaço que se percorre em ritmo de panorama… Ver a Bienal 2016 é por certo menos excitante que correr atrás de Pokémons – como fazem alguns grupos de várias idades correndo em manadas pelo Ibirapuera – afinal, vivemos em época desconcertante, para não dizer outra coisa”.
Creio que o “timing” dinâmico seja mais adequado a feiras de arte, ver, perguntar o preço, seguir para a próxima vitrine e que o esforço para estar com uma obra por mais de 2 minutos seja um bom antídoto para a anestesia intelectual propiciada pela caça a pokémons. Mas concordo com Amaral de que vivemos uma época desconcertante, em que intelectuais de outrora condenam a reflexão como “monótona”. Para Aracy Amaral, “apesar do título atraente, Incerteza Viva, a incerteza aflora nesta Bienal, sim, mas não tão viva… Às vezes recorda a quem já viveu a monotonia dos eventos dos anos 1970, embora agora embebida em rumos anódinos pelas aberturas em que se esgarçou o fazer artístico.”
Percebe-se nesta passagem que por monotonia Amaral entende a arte dos anos 1970, década que inclui produções de Cildo Meireles, Hélio Oiticica, Josef Beuys, Robert Smithson, Ana Mendieta, que certamente não poderiam ter sido compreendidas em 2 a 3 minutos mas que são até hoje extremamente frutíferas para a reflexão sobre subjetividade, ecologia, cosmologia, narrativas. Ainda mais, Amaral tenta afastar o público da mostra afirmando que “não há qualquer estímulo a uma ida à Bienal, tipo ‘Vamos ver o que apresenta tal artista”, ou ‘Veio a retrospectiva de…’. Não há expectativas que impulsionem uma visita.”
Amaral parece desejar um modelo de bienal que priorize o espetáculo das grandes retrospectivas, que já são feitas por outras instituições. Talvez há uma década a bienal precisasse preencher a lacuna de apresentar boas retrospectivas mas felizmente hoje outras instituições de arte em S. Paulo como a Pinacoteca, o MASP, o CCBB cuidam desta importante tarefa. Justamente a bienal, como esclarece o artigo de Maria Hirzsman para o Estado de São Paulo, “hoje é a única instituição que suscita algum debate sobre os rumos, a função e o estado da arte, no Brasil e no mundo”. Monotonia seria debater sobre o que já é consenso, sobre retrospectivas de artistas renomados, sobre a forma plástica espetacular e encantadora.
Uma das melhores expectativas que impulsionam visitas à bienal é ir justamente para ver o que ainda não conhecemos, fazer um esforço de compreensão da estrutura conceitual que sustenta a mostra. O texto crítico publicado em um jornal deveria fazer o trabalho de desvendar esta estrutura conceitual para o espectador e incentivá-lo a deixar os pokémons de lado por uma tarde, olhar para aquilo que não se parece com o que já somos ou já sabemos. O texto crítico deveria mostrar como uma obra se relaciona com a outra, abrir portas de acesso para as obras e para a curadoria como um todo, evitar o texto que deixa o leitor-espectador de fora, apenas olhando para a opinião do crítico. As portas que o texto crítico pode abrir convidam o espectador a adentrar um pavilhão de pensamentos. Desvendar a estrutura da exposição é justamente mostrar onde ficam essas portas. Não é preciso dar a sua opinião para ser o autor da crítica. É preciso dar a sua capacidade de desvendar estruturas.
Maria Hirszman, no artigo publicado no Estadão, procura essa estrutura analisando possíveis conexões entre as obras: “As possibilidades de conexão são múltiplas, mas alguns aspectos se sobressaem, como uma tendência à suavidade, quase a uma certa melancolia, mesmo quando estamos diante de críticas ácidas aos desmandos do mundo”. E segue comprovando seu argumento com comentários sobre obras que “criam linhas de reflexão sobre temas importantes na arte e na vida contemporânea, como ecologia, violência, trabalho, sexualidade e utopia”. Exercitar-se fazendo conexões entre o todo apresentado na bienal e cada obra, ou entre as obras umas com as outras não é monótono. Ao contrário, é revigorante para o pensamento. Para mostrar as portas de entrada para um pensamento novo, um texto crítico tem que ser ele mesmo uma obra de arte, um incitador da busca por alternativas diferentes de compreensão do mundo.
Felizmente é isso que encontramos também no texto de Paulo Miyada, publicado no mesmo Estadão: “O discurso curatorial da 32ª Bienal, capitaneado por Jochen Volz, enfatiza o interesse por saberes que transbordam o campo específico da arte, tendo a ecologia como fundamento. A mostra parece propor que, estando juntos da arte, podemos estar mais próximos de cosmogonias, saberes e discursos minoritários em um mundo regido pelo progresso, saturado por estatísticas financeiras e pelo ódio à diferença. Em seus momentos de singelo encanto, apresenta obras que exercitam a convergência de saberes ancestrais, mensagens do passado ou indefinições epistemológicas.”
Miyada usa um recurso precioso para a crítica de arte: um ritmo de escrita e escolha de palavras que transmitem a delicadeza da mostra, o ar circulando entre as palavras como circula entre as obras de uma bienal enxuta, um tom sereno, sem cacofonias, empregando na escrita aquilo que ele propõe como sendo o atrativo da arte: “Prezamos as experiências estéticas que servem como dobradiça para algo que não alcançaríamos por outros meios”.
Também Fabio Cypriano, da Folha de S. Paulo, captou a serenidade propositiva de “uma exposição delicada em um momento de conflito (…). Mesmo ao abordar questões dramáticas como racismo, catástrofes ambientais ou genocídio indígena, esta é uma Bienal silenciosa, que se percebe em atitudes discretas”. Parte então para a apresentação de obras que constroem o clima almejado pela curadoria de crítica sutil ao que somos como sociedade e possibilidades de alternativas na organização das palavras e das coisas, ou seja dos nossos signos expressivos e daquilo que compreendemos por mundo a partir desses signos. Citando Cypriano, “mesmo que na abertura da Bienal artistas tenham se manifestado contra o golpe, suas obras se apresentam menos militantes, mas não por isso menos sensíveis a processos de desmonte social”. Em poucas linhas, o crítico da Folha soube relacionar a mostra à vida do leitor, ao que importa para o leitor, e forneceu uma atmosfera poética que conduzirá a visita de quem for à exposição.
Na mesma Folha de SP, Ferreira Gullar não chega a elogiar a mostra, mas aproveita o espaço para explicar a diferença entre a arte ali apresentada e uma pintura, e produz um texto esclarecedor sobre diferentes processos de criação. Gullar, apesar de muitas vezes ter julgado a arte contemporânea com categorias do modernismo, é poeta e de criação artística ele entende. Limitou-se a escrever sobre o que conhece bem, sem menosprezar o anúncio da arte que virá nos próximos ciclos semânticos da palavra arte.
Como disse Hélio Oiticica “o crítico ou é da posição do artista ou não é”. A crítica tem uma função similar à da arte em termos de incitação ao pensamento. Parafraseando Miyada, “a crítica tem muito a oferecer como dobradiça para o que não alcançaríamos por outros meios”, e os recursos que ela tem é o espaço raro em jornais de ampla circulação, a construção de frases cujas palavras e ritmos reforcem o conteúdo, a predisposição a desvendar estruturas conceituais, e o respeito pelos artistas e curadores que desafiam o senso comum, propondo a transformação plástica das possibilidades de pensamento: outras epistemes.