Sob cabos de alta-tensão, na tríplice fronteira entre os distritos de Guaianases, Cidade Tiradentes e Itaquera, na Zona Leste paulistana, há um bosque com um riacho. “Essa configuração é um tema clássico de Courbet”, diz o artista Rodrigo Andrade. O bosque é uma mata remanescente em uma praça sem nome que estava abandonada. O córrego é o Riacho Doce, que deságua no Ribeirão Itaquera, cuja nascente vem sendo reflorestada por um grupo de artistas residentes da Cohab Habitacional Fazenda do Carmo, que cultiva ali uma horta comunitária. Já Gustave Courbet (1819-1877), o pintor realista francês cuja abordagem emocional da paisagem influenciou decisivamente a pintura impressionista moderna, também está entre as referências do coletivo paulistano de pintura que há três anos se encontra regularmente para retratar, com tinta a óleo sobre tela, a paisagem urbana e natural da Zona Leste, e hoje apresenta seus trabalhos na exposição Ar Livre: Paisagem Contemporânea em Cidade Tiradentes, no Centro Maria Antônia.
O grupo de pintura autodefine-se como uma escola nômade de arte. Como projeto de arte, política e educação, também coloca em deslocamento as noções do que é aprender e ensinar, estabelecendo como diretriz o fazer junto. Atuante em espaços culturais independentes, ateliês, praças públicas e bares, o coletivo não tem sede fixa. Essa mobilidade tem reflexo direto nas atividades de pintura com cavaletes ao ar livre do grupo, cobrindo um grande espectro de paisagens.
A água corrente nas pinturas de Evandro César, Davi Almeida, Bruno Soro e Renato Custódio é da nascente da Horta do Riacho Doce, berço do grupo de pintura e local onde a maior parte dos encontros foi realizada, conta Marina Frúgoli, curadora da exposição ao lado de Rodrigo Andrade. A água encanada das telas de (…) são do Parque Linear da Consciência Negra, remanescente de Mata Atlântica transformado em parque linear a partir da demanda da comunidade local. A água represada das pinturas de (…) são da Pedreira Luís Mateus, a gigantesca cicatriz deixada no solo de Guaianases, pelo fornecimento de pedra britada para a urbanização de São Paulo. Hoje convertida em piscinão para contenção de enchentes, por ali passam os rios Itaquera e Itaquera Mirim, desviados em épocas de chuva. Composta de água, pedra, terra, mato e casario (ocupação informal), sua paisagem é interpretada com muita riqueza e diversidade.
Além da qualidade pictórica dos trabalhos, ressalta-se um caráter sociopolítico importante no projeto. Organizadas por temas/territórios no espaço expositivo, as cerca de 100 obras de 35 artistas compõem uma espécie de mapa pictórico da região, reproduzindo os caminhos pisados pelos pintores itinerantes. No ato da pintura de observação produz-se não apenas a experimentação, mas também a demarcação desses territórios.
Esse sentimento, da pintura como aliado na tomada de posse do lugar, é reforçado pela série de paisagens imaginárias do artista Link Museu produzidas com tintas feitas justamente de pigmentos das terras locais. É significativo que o grupo abra a exposição com elas e depois ganhe os terrenos de Barro Branco, Cohab Fazenda do Carmo, Fundão da Vila Yolanda, Horta do Riacho Doce, Parque Linear da Consciência Negra, Parque do Carmo, Parque do Rodeio, Pedreira Luís Mateus, Ocupação do Texas e Vila Cosmopolita.
O efeito, para o visitante, é similar ao de ver reviver a nascente de um rio por meio do reflorestamento de suas margens com uma horta comunitária.
Serviço
Ar Livre: Paisagem Contemporânea em Cidade Tiradentes
Até 24/11, Centro Maria Antônia da USP