[…] Se o poema não tiver sobre o leitor um efeito próximo ao que a escultura teve sobre o poeta, alguma coisa deu errado. [Arthur Danto, O abuso da beleza, 2007]
Não foram poucas as vezes que, no trânsito habitual de minhas atividades, dediquei algumas dezenas de minutos observando as obras da ceramista Bruna Gidi, apresentadas na exposição (EN)CENA, em fevereiro de 2024 na Aliança Francesa de Salvador. Em uma dessas vezes, um amigo que me acompanhava me perguntou o quê eu tanto observava na peça. Na época, sem ainda ter as palavras necessárias para minha crítica, apenas o respondi que “gostava da forma como elas se tocavam”.
Após muitos meses, foi apenas no acaso de uma leitura dos comentários de Albert Camus sobre a natureza da escultura (e de uma avulsa lembrança da estátua de Condillac) que consegui, enfim, dar forma ao que antes era apenas uma intuição difusa. Tais reflexões sobre a escultura como cristalização do gesto e do instante, além da importância do toque na formação do Eu, me ajudaram a entender melhor o que tanto me fascinava em (EN)CENA. Por isso, esta crítica só ganha forma agora, um ano após a exposição de abertura, quando as palavras finalmente alcançam uma sensibilidade que, até então, permanecia silenciosa e irredutível para mim mesmo.

O TOQUE E O EU
A série (EN)CENA da artista Bruna Gidi é uma curiosa investigação das potencialidades do gesto cristalizado na escultura cerâmica. Composta por aproximadamente doze obras, a série se destaca pela simplicidade minimalista que caracteriza os corpos das figuras. Essa economia formal não implica ausência de expressividade; ao contrário, acentua a centralidade do toque como principal elemento narrativo e estético da coleção.
Um dos elementos mais marcantes de (EN)CENA é que as esculturas de Gidi são tanto agentes quanto receptores do gesto, instaurando uma dinâmica de reciprocidade que sublinha a relação indissociável entre tocar e ser tocado. Aqui, o gesto não é apenas movimento interrompido ou fixação de uma ação efêmera; é uma cristalização de significados bem construídos, mas que permitem ao seu observador certa liberdade hermenêutica.
Essa transição entre o individual e o coletivo, o específico e o arquetípico, alinha-se intimamente com as reflexões camusianas sobre a escultura enquanto arte que fixa o instante, conferindo-lhe permanência e atemporalidade. O filósofo norte-africano, em seu ensaio O homem revoltado, escreve que a escultura (para ele, “a mais ambiciosa de todas as artes”) busca “fixar em três dimensões a figura fugaz do homem” e “restaurar a unidade na desordem dos gestos”. Tal concepção dialoga diretamente com a leitura da curadora da exposição, Bruna Sanjuán, em seu texto curatorial:
“A escultura tem o poder de parar o tempo. A matéria ali presente, fruto das intempéries naturais e do molde, parece congelar momentos definidos pela artista. Apesar de se constituir como a agente das obras, o que está congelado no tempo não é a matéria criada por si, e sim, as relações, vivências e emoções inerentes ao ser humano, passadas pelas suas mãos.” (Sanjuán, 2024).

TOCAR E SER TOCADO
Étienne Condillac, em seu Tratado das Sensações, escreve sobre uma estátua de mármore que ganha consciência, gradualmente, através das faculdades sensoriais. Nesta ficção, o filósofo francês elege o tato como o primeiro dos sentidos, aquele que permite tanto o progresso das demais percepções da sensorialidade quanto da própria constituição do Eu. Para ele, o toque permite à estátua distinguir-se do mundo externo. Diferente dos outros sentidos, o tato implica resistência, profundidade e localização, estruturando, por meio da experiência senciente, as condições básicas da percepção do eu e do não-eu.
De forma análoga, percebo que as estatuetas de (EN)CENA também podem nos intuir, ou ao menos ilustrar essa possível percepção de Condillac. Em sua montagem, as obras de Gidi não apenas tocam, mas são, simultaneamente, tocadas, evocando uma relação mútua que transforma o gesto em uma forma de conhecimento e presença. Se, para Condillac, a estátua desperta para o mundo pelo tato, as obras de Gidi parecem reafirmar essa premissa em um contexto puramente humano, superando a reflexão epistêmica e alcançando dimensões afetivas, existenciais e éticas. Em termos camusianos, o toque incorporado por essas esculturas é um “gesto petrificado” que, ao mesmo tempo que remete à finitude humana, afirma a perenidade da experiência compartilhada.
Como em Camus, que via na escultura a arte capaz de fixar a fugacidade da existência, e em Condillac, que atribuía ao tato a fundação da consciência, Gidi nos mostra que o contato não é apenas um ato físico, mas também uma afirmação da nossa humanidade compartilhada. Assim, (EN)CENA não apenas representa a forma, mas também nos sensibiliza para a profundidade do que significa sentir e ser sentido.
Flávio Rocha de Deus é filósofo, Professor e Crítico de Arte. Mestre em Filosofia Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia e Doutorando em Estética e Filosofia da Arte pela Universidade Federal de Ouro Preto. Membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte e Parecerista de Humanidades do Ministério da Cultura