Uma marca de passarela no chão e seis cadeiras compõem o cenário. Apoiadas sobre as cadeiras, peças de roupas. O dançarino entra em cena usando calça e camiseta pretas e, de costas para a plateia, veste paletó, gravata e óculos. Dirige-se ao público, esboça um movimento hesitante, mas volta às cadeiras e muda de figurino. Em 50 minutos de performance, o artista monta 20 diferentes looks e apresenta-se ao público em gestos que alternam poses, saltos, corridas, caminhadas lânguidas, passos de dança. A trilha sonora vai do silêncio à música pop, passando por funk, rythm’n blues, ruídos de passos e de eletrodomésticos em uso.
A performance S é uma das sete versões de Twenty Looks or Paris Is Burning at the Judson Church (2009-2017), do coreógrafo norte-americano Trajal Harrell. Cada peça tem um título equivalente a um tamanho: Small (S), Extra small (ES), Medium (M), Antigone junior, Antigone senior, Made-to-Measure (M2M) e uma publicação Extra large (XL). Há diversas variações entre elas – na duração, na composição do elenco, na estrutura de cena. Mas todas compartilham uma só proposição e buscam responder à mesma pergunta: o que aconteceria, em 1963, se alguém da dança Voguing, do Harlem, descesse downtown, ao Greenwich Village, para performar na Judson Church. Ou vice-versa.
O projeto que deu projeção a Trajal Harrell examina criticamente dois cenários extremos da Nova York dos anos 1960: a dança pós-moderna, formalista e minimalista do Judson Dance Theather, e o Voguing, competição de caráter performativo, que se apropria do vocabulário fashion. O Judson Theather, a saber, foi um coletivo de dançarinos, compositores e artistas visuais que ocupou a Judson Church, na Washington Square, entre 1962 e 1966, e hoje configura capítulo decisivo na história da dança norte-americana. Reuniu jovens artistas como Trisha Brown e Robert Rauschenberg. Em seu No Manifesto (Não Manifesto) a coreógrafa Yvonne Rainer, do Judson Theather, postulou os preceitos da dança pós-moderna, estabelecendo a negação de qualquer concessão à técnica, ao espetáculo, ao virtuosismo, à excentricidade, ao glamour e, logicamente, à dança moderna.
Sem passar pelo caminho clássico das aulas de balé para se tornar um dançarino e coreógrafo, Trajal Harrell já nasceu pós-moderno. Natural de Douglas, no estado da Geórgia, descobriu a dança pela via interdisciplinar da história da arte, de estudos culturais e estudos feministas, cursando Estudos Americanos com foco em Processos Criativos, na Yale University. “Nas ideias centrais do pós-modernismo, qualquer movimento podia ser dança, eles estavam interessados em democratizar a dança. Correr, parar, sentar, todas essas coisas eram consideradas movimentos válidos. Isso virou uma espécie de template, um tipo de manifesto, que os conceitualistas franceses retomaram nos anos 1990”, diz Trajal Harrell à seLecT.
Trajal continuou sua formação na França, onde assumiu como cartilha o não manifesto de Yvonne Rainer. “Naquele momento eu estava muito engajado no pós-modernismo e no minimalismo. Mas, como muitos, eu não sabia onde isso ia dar. As peças que eu fazia lidavam com coisas muito simples, muito ortodoxas, como sentar, levantar, fazer movimentos de pedestres”, conta. “Quando cheguei em Nova York, em 1998, encontrei uma cena contemporânea em que as pessoas nem se movimentavam mais.”
Foi nesse contexto que o artista começou a se interessar justamente por tudo o que era mais execrado pelos discípulos do Judson Theather: a luxúria, a idolatria à moda, a extravagância e o exibicionismo envolvidos nos bailes Voguing.

Drag minimalismo
Algumas décadas antes de ganhar o mainstream com o videoclipe Vogue (1990), de Madonna, e exposição cult com o documentário Paris Is Burning (Jennie Livingston, 1990) – grande prêmio do júri do Sundance Film Festival 1991 –, o Voguing surgiu nos anos 1960 como um duelo de dança e estilo praticado em bailes da comunidade LGBT afro-americana, no Harlem, em Nova York. Inspirado originalmente nas poses de modelos da revista Vogue e na movimentação típica dos desfiles de moda – com referências também às poses de estrelas de Hollywood e das show girls de Las Vegas – o Voguing espalhou-se por clubs de cidades de todo o mundo, especialmente Paris e Nova York. Trajal garante que até mesmo o Rio e SP têm uma cena Voguing de respeito.
Em uma das matérias de XL (2017), publicação literalmente extra-large de 320 páginas diagramada com o design da revista Vogue – e última peça do projeto Twenty Looks –, o coreógrafo conta um episódio de sua pesquisa para chegar aos legendários bailes do Harlem. Em uma conversa com o artista brasileiro Eli Sudbrack, que também era residente em Nova York, os dois tentam lembrar quem levou quem ao Voguing: “Quando me mudei para Nova York, perguntei ao nosso amigo em comum Karim (Aïnouz) se ele conhecia alguém que sabia se eles ainda existiam, e ele me falou de você”, disse Eli Sudbrack. “Eu me lembro que perguntei pra ele, e ele me falou de você. Pensei que você era quem conhecia. Pensei que eu é que tinha te contatado”, responde Trajal Harrell.
O fato é que, quando chegou lá, Trajal descobriu a América. “Quando fui ao meu primeiro baile Voguing, fiquei chocado. Aquilo era incrivelmente pós-moderno! Pensei: é pra lá que a dança deve ir”, conta à seLecT. Se os primeiros pós-modernos estabeleceram que qualquer movimento poderia ser dança, então Trajal Harrell definiu um novo repertório de signos. E ele incluía tudo aquilo que se via nos duelos drag: caminhar, parar, posar, olhar.
“O engraçado é que, quando toda essa nova informação chegou até mim, eu fui convidado para realizar uma performance na Judson Church. Eu tinha de me preparar pra isso, ninguém me conhecia em NY”, conta. “Estava trabalhando no meu estúdio e pensei: e se eu fizer uma peça Voguing superminimal?”
Twenty Looks é um olhar para o Voguing pela lente do minimalismo. Coloca em diálogo duas cenas que se desenvolveram ao mesmo tempo, em partes diferentes da cidade – no Harlem e no Village – e nunca haviam se comunicado. O projeto foi um sucesso total. Não apenas entre o público da meca da dança conceitual nova-iorquina, mas de crítica.
Em 2012, depois de ter feito uma residência no Guggenheim Fellowship, de ter criado a peça M2M – a primeira coreografia comissionada pelo MoMA PS1, e ter sido indicado ao Bessie Awards (The New York Dance and Performance Awards), Trajal Harrell chegou a ser chamado de “the next Martha Graham”, por transformar a arte da dança como Graham fez no século 20.

Performar o gênero
“Eu estava ciente de que o que era proposto pelo Voguing era negado pela dança pós-moderna, que estava tentando neutralizar a ideia de que o gênero pode ser performado”, continua Trajal. “Enquanto os pós-modernos tentavam atingir um corpo neutro e imprimir ao movimento um certo formalismo – embora não admitam isso –, o Voguing estava dizendo que nenhum de nós é neutro, estamos sempre performando algum tipo de corpo, algum tipo de gênero.”
Ao entrar em cena vestindo figurinos neutros, de cor preta, e aos poucos ir montando os “20 looks” com cores e acessórios, os dançarinos desconstroem qualquer traço de neutralidade: de sexo, gênero, estilo, personalidade. A tensão que o coreógrafo cria entre as duas tradições é aquela entre as classes e regiões da cidade, entre neutralidade e artifício, entre contenção e liberdade, entre o prosaico e o barroco. “O Voguing está tentando, de alguma maneira, democratizar uma questão: para que possamos ser parte dessa democracia, e nos beneficiarmos dela, em que tipo de performance devemos participar?”, indaga.
Os encontros improváveis estão no cerne da pesquisa de Trajal Harrell. Estabelecer encontros tornou-se, de certa forma, seu método de trabalho. Antes de visitar São Paulo, em dezembro de 2017, para uma viagem de pesquisa a convite do colecionador Pedro Barbosa, ele participou da documenta 14, em Atenas, onde reside, e acabava de concluir uma residência no MoMA NY, na qual trabalhou sobre o encontro entre duas lendas da dança: Tatsumi Hijikata, fundador do butô, e Dominique Bagouet, líder da Nouvelle Danse francesa. A pesquisa resultou na peça The Ghost of Montpellier Meets the Samurai. Trata-se de um estudo do orientalismo pela ótica da dança moderna norte-americana.
“O encontro tornou-se uma prática natural que funciona para mim como uma maneira de produzir a diferença. Penso que, ao colocar duas coisas juntas – coisas que nem sempre são opostas –, eu posso criar uma terceira. E sair desse modelo de oposição binária”, conclui.