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Postado em 23/01/2023 - 3:14
Trio suicida
A graça e a desgraça do fotojornalismo: autonomia como linguagem e como narrativa visual, além do desejo pelo reconhecimento como arte, deslocam debate sobre as imagens

Em 2013, José Alejandro Restrepo roubava a cena da exposição Cantos Cuentos Colombianos: sua instalação Musa Paradisíaca trazia 25 abundantes cachos de bananas para o casarão da já falecida, mas, então, jovem e luxuosa, Casa Daros. Conforme previsto, já que a primeira montagem do trabalho é datada de 1996, com o passar das semanas, as frutas começaram a cair, a beleza apodreceu e a ousadia se tornou insuportável, com o odor que ia cada vez mais longe. Quando terminaria a obra? Com a queda da última banana? Até que a sala se tornasse insalubre?

Para completar, a excentricidade da situação roubava a cena até do próprio trabalho, que incluía vídeos “pendurados” nas pontas dos cachos, que podiam ser vistos a partir de espelhos no chão, sobre massacres de bananeiros na formação da Colômbia. A versão brasileira foi favorecida pela popularidade da fruta no país, onde um dos símbolos dos “trópicos” é somente algo ordinário, despertando outras indagações, como: Banana é arte? Pior, banana podre é arte? E, ainda, onde estava o gesto do artista?

Uma das questões que a obra do colombiano evoca é que o fim da relação tradicional do artista com o fazer, pretendido há pouco mais de um século, ainda não foi assimilada pelo público – de forma ampla, público em geral, sem complexo de vira-lata. Desde a emblemática Fonte (1917), de Marcel Duchamp, objetos que não haviam sido produzidos pelas mãos do artista foram, pouco a pouco, admitidos como obras. O depositário de urina tornou-se a Fonte. As frutas, a Musa Paradisíaca. Para que as coisas – e, especialmente, as mais ordinárias – sejam tornadas obras de arte, elas precisam morrer primeiro, junto às suas funções. Se não há uma definição para arte, ao menos, convencionou-se que ela não teria uma função.

Décadas depois do gesto inaugural de Duchamp, os jornais impressos do Brasil passaram a respeitar os direitos autorais dos fotojornalistas, publicando seus nomes junto às imagens das quais eram os autores. A conquista do mínimo de reconhecimento abriu espaço para questões mais complexas na busca por autonomia, das quais destaco duas: autonomia como linguagem, sendo um tipo particular de fotografia; e como narrativa visual, com posição equivalente à textual – especialmente, nos grandes veículos impressos. À já conflituosa relação dessas duas questões, soma-se uma terceira: o desejo pelo reconhecimento como arte.

Esse é um trio suicida. Para começar, ainda hoje, a fotografia ocupa uma posição desprestigiada no mundo das artes. Várias tentativas de reverter esse quadro incluem a minimização da “caixa-preta” para dar protagonismo à criação. Mesmo em imagens que “capturam o instante”, o fotógrafo constrói a cena. Ou seja, para deixar de ser mero um técnico, ele tem de abandonar a pretensão de neutralidade. Ao mesmo tempo, a fotografia jornalística é uma imagem que tem uma função, a de informar. E, ao ser publicada, ela informa não somente o “fato”, mas, também, a linha editorial do veículo e a sua posição política. A equação formada pelas três questões não tem solução. São elementos antagônicos, a graça e a desgraça do fotojornalismo, que se torna ainda mais fascinante quando é habitado pela poesia, desde que não seja antiético.

A polêmica em torno da fotografia de Gabriela Biló, publicada na capa da Folha de S. Paulo da última quinta-feira, 19/1, desperta duas discussões, entre outras. A primeira é sobre a repercussão entre fotojornalistas, que evocaram a captura do instante e a neutralidade para criticar a fotojornalista. A quem interessa a omissão utópica – e perigosa – do lugar da criação e da subjetividade no fotojornalismo? A segunda é sobre a responsabilização dos grandes jornais brasileiros pelo atual cenário político do país. Até que a pausa gerada pelo mea-culpa deles se estendeu mais do que o esperado. Mas, já que estamos discutindo anistia, por que não incluí-los?

Daniele Machado é historiadora da arte.

Exposição na Casa Daros. Musa Paradisiaca, de Jose Alejandro Restrepo (Foto: Sergio Araujo/ Divulgação)
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