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Postado em 10/11/2011 - 5:20
Tríplice fronteira sonora
Juarez Fonseca

A vigorosa e crescente convergência de ritmos entre compositores e intérpretes brasileiros, argentinos e uruguaios

3musas

Foto: Ricardo Van Steen

Quando formulou sua estética do frio, o compositor Vitor Ramil tinha claro que não era em oposição a uma estética tropical, e sim em acréscimo à diversidade da música brasileira. Vinte anos depois, ele vê o tema sendo aplicado por outros artistas em meio a um crescente contato entre músicos brasileiros, uruguaios e argentinos.

Em um dos lados da questão está a milonga, gênero meio mítico – feito o blues – que até hoje não se sabe ao certo como se formou na região do Pampa, comum aos três países. Para uns, derivaria da habanera cubano-espanhola – assim como o choro e o maxixe, e daí o samba, no Brasil. Também há quem nela note traços de uma música medieval portuguesa, a “melos longa”. Certo é que a milonga é a mãe do tango; e a estética do frio não seria a mesma sem ela.

As ideias e as milongas de Vitor Ramil, mais a agitação musical no extremo sul, motivaram o cineasta curitibano Luciano Coelho a realizar o documentário A Linha Fria do Horizonte, que começou a ser rodado no início do gelado julho de 2011 em Porto Alegre e interior do Rio Grande do Sul, seguindo para Montevidéu e Buenos Aires, até agosto. A equipe registrou paisagens e particularidades culturais da região, com depoimentos de músicos como os uruguaios Daniel Drexler e Ana Prada, os argentinos Kevin Johansen e Carlos Villalba, os brasileiros Arthur de Faria e Marcelo Delacroix.

No filme, Johansen revela que uma de suas influências é a música brasileira, em especial o tropicalismo. Ou seja, a estética tropical. Paradoxo? Não exatamente. Foi ao ouvir por acaso, em 2003, o disco Tambong, de Ramil, que o hoje internacional Jorge Drexler quis conhecê-lo, pela semelhança musical. Tornaram-se parceiros. Tambong tinha sido gravado em Buenos Aires, com produção de Pedro Aznar.

Na época, os irmãos Daniel e Jorge Drexler haviam adotado a expressão “templadismo” para identificar seus trabalhos e os de outros jovens, que eram ao mesmo tempo claramente uruguaios, mas diferentes da música tradicional do país. A expressão “templado” (temperado) também tem a ver com o clima, as estações definidas, muito frio no inverno, muito calor no verão. Quando Ramil lhes falou da estética do frio, sentiram-se em casa. Viram que, nos dois lados da fronteira, havia visões parecidas.

Daniel diz que não lhes ocorria a possibilidade de mostrar sua música no Brasil. O primeiro show de Jorge foi em Porto Alegre, antes de ele ficar famoso com o Oscar (para a música do filme Diários de Motocicleta) e teve Ramil como anfitrião. O criador da Ramilonga já tinha prestígio nos círculos antenados de Buenos Aires, mas a via de mão tripla com as capitais do Prata foi ficando cada vez mais fluente. Em 2009, depois de estrear, em Porto Alegre, o show Sin Fronteras (com Ramil, Delacroix, Daniel Drexler e Ana Prada) fez sucesso em Montevidéu. No ano seguinte, Arthur de Faria liderou a criação da Surdomundo Imposible Orchestra integrada por outros brasileiros (os paulistas Maurício Pereira e Caíto Marcondes), dois uruguaios e dois argentinos. A Surdomundo apresentou seu mix de músicas dos três países em Buenos Aires, São Paulo e Porto Alegre, onde este ano Daniel, Ana e Kevin vieram lançar seus discos.

O contato já envolve pontos além da estética do frio. O compositor Richard Serraria lançou na internet o álbum Pampa Esquema Novo, com músicos dos três países cruzando milonga, samba, maçambique (ritmo afro-gaúcho), maracatu e o uruguaio candombe. O título inspira-se no clássico disco Samba Esquema Novo, de Jorge Ben: música quente, cheia de tambores, em contraste com as depuradas e reflexivas canções de Vitor Ramil ao violão.

Um dos convidados do álbum de Serraria, Zeca Baleiro também tem trabalhado em parceria com Ramil. Para seu último disco, Zeca compôs a Milonga del Mejor. Assim, a milonga do frio encontra a milonga do calor. Ambas são brasileiras.

Juarez Fonseca é crítico de música, produtor de shows e agitador cultural, foi editor do caderno Cultura do jornal Zero Hora (Porto Alegre).

Publicado originalmente na edição impressa #2.