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Desenhos da série CicloTransAmazônicaAérea (2013-2018), de Jarbas Lopes [Fotos: Edouard Fraipont / Divulgação]
Postado em 28/10/2022 - 5:22
Um futuro para hoje
Jarbas Lopes celebra 20 anos do projeto Cicloviaérea com proposição de eixo suspenso na Amazônia para conectar as formas de vida urbana e da floresta

“CICLOTRANSAMAZÔNICAAÉREA É UMA POÉTICA ESPACIAL INTERMODAL CUJO EIXO CONDUTOR DE PRODUÇÃO DE EXPERIÊNCIA É O TECNOXAMANISMO DO ENCAIXE HUMANO-BICICLETA. Convida-nos a imaginar, com a totalidade inacabada de nossos corpos uni e pluricelulares, utopias materializáveis e materializadas. Se com a morte do último xamã amazônico o céu cairia sobre todos, com a instalação do primeiro pilar da cicloviaérea a pele do céu se estica mais alto.” O novo desdobramento da série Cicloviaérea (2001-2022), pensado para atravessar 600 quilômetros na Amazônia sem derrubar uma única árvore, foi anunciado em um zine não datado que a Editora Kadê, do artista Jarbas Lopes, publicou e pôs para circular há alguns anos.

Esse é o modus operandi do projeto estético-político mais longevo de Jarbas Lopes. Desde os primeiros estudos, desenhos e das primeiras bicicletas customizadas com o hoje conhecido trançado de vime que recobre e ornamenta a bike, a Cicloviaérea costuma provocar uma dúvida: trata-se de um projeto de urbanismo ou de uma utopia? Deparar com os objetos, desenhos e maquetes em uma exposição (por exemplo, na Bienal de São Paulo de 2006 ou no Panorama do MAM em 2011) gera essa ambiguidade entre uma proposta pragmática, de realização possível na trama urbana, e algo da ordem do sonho, como uma possibilidade de imaginar um mundo que a gente sabe que não vai existir. O paradoxo transfigura-se diante dos trechos experimentais móveis da Cicloviaérea, já instalados no Sesc Belenzinho, em 2018, e no Parque do Ibirapuera, no período do Panorama 2011, entre outros, quando a experiência deste trabalho coletivo pode ser vivida coletivamente. De utópico, o trabalho realiza-se à medida que é usado e partilhado. A Cicloviaérea está se realizando há 20 anos, toda vez que alguém pega uma bike do projeto, seja na Pampulha, seja no Sesc, e dá um rolê.

“São utopias possíveis, não é? Depois de um tempo, fui ver que existe também esse pensamento das utopias possíveis em diferentes filósofos, como algo estudado no campo do conhecimento. Mas isso tudo parte de uma ideia que me vem intuitivamente, em 2001, como uma resposta que poderíamos chamar de positiva para a esfera política e para a sociedade”, diz Jarbas Lopes à seLecT. “Dentro dessa lógica ou percepção de protesto, ou manifesto, o que poderia ser uma resposta, o que é que a gente pode resolver então nessa confusão? O que seria, afinal, divertido também?”, questiona. “Assim veio essa ideia da Cicloviaérea. Não é uma questão só da bicicleta. É sobre o prazer. Ele abrange tudo, ele abre uma plataforma, como se diz atualmente, e, quando surgia essa leitura, da utopia, eu respondia que era um futuro pra hoje.”

ANTES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Lopes costuma trabalhar com enunciados para suas obras. O da Cicloviaérea descreve “uma pista suspensa com um pequeno declive em sua extensão que proporcionará uma leve força a favor em seu percurso, facilitando longas distâncias de bicicleta dentro do cotidiano de transações urbanas”. Começar a usar a “tecnologia do corpo” era para já, desde o enunciado de 2001, muito antes de as ciclovias se disseminarem nas políticas públicas. Um entendimento político das tecnologias perpassa a pesquisa do artista. “É como agora com o celular, que primeiro era uma coisa futurista, de um alcance inimaginável, mas que logo depois começa a criar problemas, como todas essas invenções, certo? O avião, por exemplo. Alguns anos depois de ser inventado, estava jogando bomba na cabeça dos outros. Daí a importância de propor uma resposta no campo político, porque somos atingidos também, somos afetados por tudo isso”, reflete.

Além do enunciado-manifesto, o projeto sempre foi acompanhado de desenhos, em que Jarbas Lopes representa não a própria Cicloviaérea, mas o imaginário que ela gera. A CicloTransAmazônicaAérea começou a ser gestada entre 2015 e 2016. “Comecei a imaginar essa ideia de migrar da via para o trans, como se fosse uma ficção de novo. Porque na cidade isso já se realizou. Então, o novo território da ação passa a ser a Amazônia. É uma proposta que eu acho que pode acontecer. A gente gosta de ficar construindo coisas, as civilizações. Uma vez, encontrei um engenheiro argentino que tinha cruzado a Amazônia com uma linha elétrica, com o cabeamento da rede elétrica. Eles abriram uma faixa de 3 metros de largura por 600 quilômetros. Só que ali cortaram tudo, né? Detonaram geral. Então é isso, será que a gente não pode, se fizeram isso, fazer uma cicloviazinha?”, diverte-se.

Estamos na segunda sala da exposição GIRA, no Museu de Arte do Rio, quando Jarbas fornece essas explicações. Em frente aos desenhos da CicloTransAmazônicaAérea, feitos com esferográficas azuis, vermelhas, pretas e verdes, uma enorme maquete é habitada por plantas que o artista e duas colaboradoras especiais, Katerina Dimitrova e Amora Dimitrova Lopes, trouxeram de casa, em Maricá, para criar o jardim que faz as vezes da Amazônia na escultura. Em um sábado ensolarado de fim de julho, o MAR está cheio de visitantes e a exposição individual de Jarbas Lopes prende a atenção, porque mobiliza muito mais do que os olhares. Na primeira sala, por exemplo, três obras da série Shock Pintura – estruturas de alumínio com cordas de alpinismo trançadas – podem ser usadas para balançar o corpo; e uma bancada com diversas publicações da Editora Kadê convida o visitante a se sentar e passear pelos livros-objetos do artista, que concentram as suas experimentações estético-políticas, sempre democraticamente colocadas em circulação.

COMEÇAR A USAR A “TECNOLOGIA DO CORPO” ERA PARA JÁ, DESDE O ENUNCIADO DE 2001, MUITO ANTES DE AS CICLOVIAS SE DISSEMINAREM NAS POLÍTICAS PÚBLICAS. UM ENTENDIMENTO POLÍTICO DAS TECNOLOGIAS PERPASSA A PESQUISA DO ARTISTA

TECNOLOGIA XAMÂNICA
O título da mostra vem da mesma raiz: girar, circular. Este, o ponto de partida de toda a pesquisa do artista, que articula a ideia de uma “tecnologia xamânica”. Tecnologia significa uma vastidão de saberes contraditórios no léxico de Jarbas Lopes. “Como é que a pessoa entra na Amazônia? Vou vestir uma bota, vou botar um capacete? Vou fazer uma armadura de fibra de carbono, superleve, mas que pode vir um jacaré morder, não vai ter problema. Ou um inseticida. Não, você tem ali uma energia xamânica que o adapta melhor, de modo que você não precisa de ninguém pra ficar carregando sua mala na hora que você está andando lá. Nem carrinho pra puxar a mala, sabe? Está querendo uma pousada, um resort pra você mergulhar na piscina? Não, você se adapta igual a esses povos que vivem já há milênios em convivência com esse ambiente, mas você mantém também essa relação com o urbano, uma coisa que a gente tem. Não é só uma crítica a isso, mas uma relação entre as duas coisas, um jeito de compreender esse ambiente, utilizá-lo de outra forma, por outra lógica, e sempre ligado a essa coisa do prazer.”

Nascido e criado na Baixada Fluminense, Jarbas conta que a visualidade do subúrbio carioca sempre informou seus trabalhos, como se vê na escultura-tenda DEEGRAÇA (1998), que mostrou no Panorama MAM de 2001 e na coletiva Gambiarra (2003), na Gasworks, em Londres. Feita de faixas de ráfia costuradas, ela delimita um território de 25 metros quadrados, que já abrigou performances musicais, festas e outras ações por onde passou, e cabe em uma sacola (também de ráfia, que tem o título do trabalho). “Esses materiais todos têm também o lado estético. São coloridos, têm a coisa gráfica do anúncio de mercados, os anúncios de bar, que foi o primeiro material que usei, naquela barraca de praça. Aquele é o primeiro projeto que eu fiz que estabelece uma relação com o público, tem participações, performance improvisada, convivência. Esse é o material de anúncios de eventos culturais na periferia, com o qual tinha uma relação anterior, porque meu pai foi dessa área, convivi muito com essas faixas na infância e adolescência, porque era parte da cultura da periferia onde eu vivia”, conta.

Mais do que falar de reutilização, interessa operar uma transmutação. Esta é a alquimia que se processa na série O Debate (1998-2019), em que entrelaça cartazes de campanha eleitoral, uma das obras mais conhecidas de Jarbas Lopes, exibida no mesmo Panorama de 2001 e na Galeria Reocupa, da Ocupação 9 de Julho, em São Paulo, na mostra O Que Não É Floresta É Preso Político (2019). “Não é só uma questão de reaproveitamento, porque a reutilização tem também esse sentido político e atual da reciclagem, mas no fundo é uma maneira de se relacionar com o material que tem um histórico com o qual você cria outra relação. Esses materiais que vou buscar na rua me interessam porque chegam impregnados do que está acontecendo e a mistura com o experimento plástico possibilita essa modificação dentro dessa esfera da arte e da política.”