Não estou em nenhuma maré de sorte ultimamente. Cambaleando de edição em edição da revista, vendo poucas exposições, fazendo entrevistas burocráticas, escrevendo textos inexpressivos. Meu marco profissional mais recente é o dos entrevistados que se rebelam, justificadamente. Pélagie Gbaguidi (Senegal, 1965), a artista que esteve com mostra solo em cartaz na galeria Fortes D’Aloia & Gabriel, optou por declinar por completo da entrevista enviada por e-mail. Já Pascale Marthine Tayou (Camarões, 1967), que expõe n’A Gentil Carioca Sampa até 21/5, concordou com uma entrevista por escrito e nitidamente se irritou com as perguntas, a que respondeu mesmo assim, muito gentil.
Relendo as perguntas aos dois artistas, percebo que com Gbaguidi minha estratégia foi evitar questões temáticas e privilegiar aspectos processuais de seu trabalho, enquanto com Tayou fiz o oposto e elaborei perguntas sobre o discurso mesmo de suas pesquisas. O fato é que, agora, vejo nítida a premência da questão da violência colonial e dos silenciamentos e aprisionamentos do corpo na obra de Pélagie Gbaguidi, enquanto passei a enxergar processos e investigações de forma no antes (para mim) conteudista trabalho de Pascale Marthine Tayou. Importante acrescentar que, entre participações cambaleantes nas edições, também tenho andado distraída. Meio desligada.
O LAMENTO
Não podemos superestimar o grau em que o contexto permeia as intenções, ensina Arthur C. Danto. Fala de arte, mas serve para a crítica de arte também. Não são as edições nem as exposições ou mesmo os artistas, a entrevista tá ruim porque continuo funcionando em um modo jornal diário mainstream. Esse modelo prevê um tipo de postura assertiva e crítica que pressupõe não um diálogo, mas um inquérito, com perguntas duras e que constranjam o entrevistado a revelar a verdade, ainda que pela tentativa de escapar da questão, um ato falho, uma emoção fora de lugar.
Para dar um exemplo, lembro de uma ocasião, quando trabalhava em um caderno semanal em jornal de grande circulação, em que sugeri uma entrevista com um galerista que iria inaugurar uma exposição para celebrar não lembro quantas décadas de trabalho. Pauta aceita, fui entrevistá-lo e ao longo da conversa percebi que a intenção dele era contar os podres do mercado de arte, portanto optei por deixá-lo falar, fazendo poucas intervenções, ou pequenas provocações para entendidos em arte. A pessoa editora que pegou o texto no fechamento me chamou à mesa dela, imaginei eu que para tirar alguma dúvida ou questionar o uso de um termo ou outro, o tipo de coisa que pessoas editoras questionam no processo final de edição, mas o que ela fez foi destruir o que eu fizera:
– Você está levantando a bola para ele cortar. Isso não é uma entrevista.
A pessoa derrubou a matéria, que é como jornalistas se referem a textos prontos que são limados. Fiquei péssima, questionando a minha habilidade de farejar boas pautas e de intuir a relevância do que diz um entrevistado. Não fui capaz de defender a minha opção jornalística. Tentei construir ao longo do tempo, uma maneira instigante de fazer entrevistas. Para mim, a boa entrevista preserva a fala e as formas de falar do entrevistado, iniciando com uma pergunta de impacto (uma leitura pouco óbvia sobre o trabalho da pessoa artista ou uma provocação crítica a algum aspecto da pesquisa) para desorganizar as expectativas (em geral negativas em relação à pessoa jornalista) e determinar a atmosfera da entrevista.
Isso tudo era antes de Pascale Marthine Tayou e Pélagie Gbaguidi, que me fizeram perceber com bastante atraso que entrevistar um artista consiste em continuar uma conversa que começou na interação com os trabalhos de arte dele ou dela, que perdurou na experiência das obras no espaço necessariamente dialogando entre si e com outras coisas – da obra de um outro artista em uma expo coletiva à arquitetura ou ao contexto histórico, social e infraestrutural do espaço expositivo. Assim como se relacionar com a arte propicia uma sensação de reencontro com algo que se amou e se perdeu há muito tempo (aqui, cito Aixa de la Cruz, e seu comovente As Herdeiras), também a entrevista com um/a artista deveria mediar o encontro das pessoas leitoras com esse sentimento agudo que a arte desperta.

A ENTREVISTA
Um “ismo”, como em “modernismo”, costuma indicar uma maneira de operar. O título da exposição de Pascale Marthine Tayou é Brazilism e este foi também o nome que o artista deu à instalação que apresentou na 25ª Bienal de São Paulo (2002). A estratégia de projetar um “ismo” a partir de um dado geográfico ou cultural é frequente na produção de Tayou. Voodooism é título de uma série de trabalhos de 2017 em que o artista pretendia flagrar a “voduização do mundo”, ou seja, “uma sucessão de ritos que moldam nosso modo de vida, onde, em algum lugar, tudo se torna vodu”. De forma análoga, podemos pensar em uma brasilianização do mundo? Em caso afirmativo, deveria haver uma percepção de brasilidade por parte de Marthine Tayou, a perspectiva de um artista camaronês radicado na Bélgica. Tendo essas informações e reflexões em mente, achei condizente perguntar ao artista o que, em sua visão, torna o Brasil o que ele é.
A pessoa leitora há de ter percebido duas de muitas questões nessa fala complexa e bela: o que quer que Tayou pensasse ou imaginasse sobre o Brasil antes de vir para cá, deixou de pensar ou imaginar assim que chegou aqui. O fato de o primeiro contato com uma “imagem de Brasil” ter sido mediada pelo curador alemão daquela edição da Bienal demonstra, sabidamente um olhar exotizante (vide mostras sobre futebol e Carnaval que realizou após duas edições da Bienal de São Paulo, de 2002 e 2004), empresta certa ambiguidade à afirmação sobre o que já tinha vivenciado em outras partes do mundo “até o Brasil” – refere-se à precariedade da vida de populações marginalizadas ou aos preconceitos de curadores e outros agentes no meio de arte? O que Pascale Marthine Tayou quer dizer quando menciona a própria experiência “sob a ponte”?
Sem poder fazer essa pergunta complementar, a entrevista prossegue com minha assertividade tolamente crítica: O brasilianismo e o voduísmo também apresentam um risco: o de exotizar um lugar ou prática espiritual simplificando demais o que de fato são. Como evitar essa simplificação? Dos vídeos a que assisti enquanto preparava a entrevista, sei que o inglês de Marthine Tayou, cuja língua materna é o francês, não é impecável, mas ele se comunica muito bem falando inglês. De modo que ao começar a sua réplica à pergunta sobre exotização com a frase “We are all curiosities, walking exotica wandering across the world’s roads”, deduzo que ele quer dizer exatamente o que disse e como escreveu. “Somos todos curiosidades, exotices ambulantes vagando pelas estradas do mundo.”
Aqui sua resposta completa: “Somos todos curiosidades, exotica ambulantes vagando pelas estradas do mundo. Não há perigo em descobrir afinal que o que forma nossas curiosidades são simplesmente nossas práticas cotidianas, sejam elas espirituais ou não. Cabe a cada indivíduo emprestar sentido ou falta de sentido [nonsense] ao seu ser — ainda que por meio de uma simplificação excessiva deste. O que mais importa é a verdade escondida por trás de nossas mentiras cotidianas; sinceridade em vez de hipocrisia presumida. Cada um deve se definir. Sou de origem camaronesa, o que significa que meu ‘brasilismo’ é uma espécie de ‘camaronismo’, assim como uma “chinoiserie” [imitação da cultura visual chinesa] poderia ser uma ‘duckery’ [algo como ao estilo de pato] ou uma ‘americanidade’… e assim por diante”.
De novo, elegantemente e com um quê de sarcasmo, Pascale Marthine Tayou desmonta a pergunta. Simplificar não é intrinsecamente negativo, e portanto não precisa ser evitado. Culturas locais e ritos espirituais são práticas cotidianas às quais se associam diferentes significados, que cabem a cada indivíduo determinar. Esses sentidos derivados dos hábitos, rituais, fazeres e crenças constituem o sentido que cada pessoa dá à própria existência, de modo que se pode atribuir muitos sentidos à vida ou nenhum sentido, é uma escolha individual. Sendo camaronês, é evidente que um “brasilianismo” que Tayou crie vai ser influenciado por seu “camaronismo” de base, e o mesmo se passa com toda e qualquer representação de uma dada realidade por quem não procede daquela realidade; um empréstimo, uma homenagem, um jogo de significados intercambiáveis, paralelos, vizinhanças, trocas, diálogos. A imaginação é uma conversa.


O ADAGIO
Assim que cesso a assertividade das críticas travestidas de perguntas, Tayou para de rebater as perguntas, de modo que a troca de ideias a seguir se compõe de dúvidas sinceras seguidas de sugestões verdadeiras. Minha terceira pergunta é: Você frequentemente trabalha redefinindo diversos materiais do cotidiano, mas as sacolas plásticas se tornaram uma marca visual de suas obras. É interessante ver como sua pesquisa com o plástico levou a uma economia material como a de obras como Colorfolies (2020-2024). Com os outros materiais recorrentes, você também busca transformá-los a ponto de torná-los irreconhecíveis? Transmutar a materialidade daquilo que polui ou degrada o planeta, como no caso do plástico? A resposta:
Fazer propostas sem fazer sermões…
Transformar sugestão em um momento de questionamento…
Esculpir um pedestal para compartilhar minhas preocupações…
A banalidade é minha ferramenta porque é essencial.
Na diversidade dos materiais residem meus sonhos.[To make proposals without preaching…
To turn suggestion into a moment of questioning…
To sculpt a pedestal for sharing my concerns…
Banality is my tool because it is essential.
In the diversity of materials dwell my dreams.]
Ler as intervenções de rigor formal, apreço poético e atitude ética do artista vai ressignificando a leitura inicial que tinha feito das obras. Não há aqui qualquer tipo de essencialismo dos materiais: as sacolas de plástico, que já configuraram coloridas copas de árvores imaginárias e montanhas invertidas suspensas como um imenso lustre barroco, não fazem sentido por si mesmas. Os materiais de trabalho do artista são muito variados. Têm em comum, sim, a banalidade — tecido, recipientes diversos, utensílios domésticos, ferramentas de trabalho, canudos, sacolas, panelas, roupas, cabides, novelos de lã, telhas, toalhas, baldes. “A banalidade é minha ferramenta porque é essencial”, sem simplificações. Ou tornando simples uma escolha bastante complexa, porque não há vantagem em complicar.
Deste modo é que Fishnet (2025), um retângulo formado por pequenos quadrados feitos de pedaços de canudos de plástico de diversas cores e mesmo tamanho, montado com fios e pregos, levemente afastado da parede, sugere uma rede de pesca, mas também funciona como pintura geométrica de efeito op. É uma obra que confronta uma prática milenar com uma indústria que exaure os recursos naturais por meio da extração e da poluição, que contrasta subsistência com ganância, que opõe a uma tradição monumental de pintura que visa a permanência um abstracionismo faça-você-mesmo temporário e bem-humorado. Nenhum absoluto, apenas verdades provisórias até a próxima leitura, que será acolhida e validada nessa conversa infinita.
Na exposição n’A Gentil Carioca, uma obra desenha o Rio Amazonas em neon, destacando suas curvas. A água é um tema de investigação em sua prática? Qual o papel dos rios em sua iconografia?
Com Amazonia (2017), não falo apenas de água, mas de vida — vida que, como uma serpente sem cabeça, nos arrasta para as profundezas de suas ondulações nauseantes. Esta obra deveria nos lembrar das zonas poluídas ao redor do globo, dos limites de nossas necessidades materiais — uma forma de confrontar as consequências de nossas paixões humanas. Amazônia é um retrato da exploração desenfreada de cobalto no Congo; é a face dos extremismos que corroem o mundo.
Outra obra da exposição mostra um conjunto de potes com interior revestido de tinta dourada. É uma referência à extração de metais preciosos nas Américas?
Sim — para validar sua leitura da obra em relação ao seu ambiente. E não — porque muitas vezes, panelas velhas fazem a melhor sopa, não fazem?
Como você imagina a circulação de suas obras entre a Europa, a África e as Américas? Essas obras representam uma jornada simbólica de reparação diante da violência do passado do tráfico transatlântico de escravizados?
Não sei… essa responsabilidade pela circulação de obras de arte não me cabe. Meu papel é dar substância às minhas ações e produções, e esta entrevista já é uma forma de facilitar essa circulação. No fim das contas, caberá à história humana me dar um lugar na estrada simbólica das jornadas reparadoras em resposta à violência do tráfico transatlântico de escravizados, concorda?
Por fim, os múltiplos significados que a casa adquire no seu trabalho são impressionantes: ela aparece em muitas das suas instalações, geralmente construídas sobre pilares ou suspensas e de cabeça para baixo. As esculturas de casas exibidas aqui em São Paulo têm conexão com aquelas que você criou anteriormente ou são específicas para o contexto brasileiro?
Em geral, sempre tento situar meu conceito dentro do contexto. Sempre que tenho oportunidade, simplesmente tento dizer a minha parte da verdade. Todas essas casas suspensas, todos esses objetos levitando ou pilares fixados no teto provavelmente representam o engarrafamento em que me encontro — são o avesso da minha decoração intimista.

Serviço
Pascale Marthine Tayou: BRAZILISM
Visitação: Segunda a sexta, 10h às 19h; sábado, 11h às 17h; até quarta, 21/5
Local: A Gentil Carioca São Paulo (Travessa Dona Paula, 108, Higienópolis, São Paulo – SP, 01239-050, https://www.agentilcarioca.com.br)
Este ensaio-entrevista integra a trilogia operística de crítica em primeira pessoa que começou com um recital-reportagem e se encerra com uma aula-show, a ser publicada em breve.