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Being Safe is Scary (2017), intervenção de Banu Cennetoglu na fachada do Fridericianum (Fotos: Paula Alzugaray e Ricardo van Steen)
Postado em 10/06/2017 - 11:42
Uma Documenta autocrítica
A D14 pode ser interpretada mais como exposição de um statement curatorial do que como expressão de estados da arte atual
Paula Alzugaray

Dois meses após ser inaugurada em Atenas, na Grécia; cinco meses após a posse de Trump nos EUA; três meses depois de aprovado o Brexit; dez dias após atentado matando 80 pessoas e ferindo mais de 300 em Cabul, no Afeganistão; e poucas horas depois dos últimos ataques terroristas em Londres e Paris, a Documenta 14 abre em 10/6 (sábado) em Kassel, na Alemanha.

Ainda que o engajamento com realidades sócio-políticas tenha sido o partido de nove entre dez grandes exposições periódicas internacionais nos últimos 15 anos, é preciso notar que poucas vezes chegou-se ao grau de eloquência política como nesta 14ª edição da Documenta de Kassel, intitulada Aprendendo com Atenas.

Adam Szymczyk abre a D14 em púlpito especialmente construído pelo coletivo esloveno Joar Nango
Adam Szymczyk abre a D14 em púlpito especialmente construído pelo coletivo esloveno Joar Nango

A primeira voz curatorial da conferência de imprensa que teve lugar em 7/6 (quarta-feira), no Kongress Palais, foi contundente. Não veio de Adam Szymczyk, diretor artístico da mostra, mas do curador Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, quem de entrada conferiu um tom de fórum político a este que é um dos mais importantes eventos artísticos do planeta, e que tem lugar a cada cinco anos na cidade alemã de Kassel.

Em uma sequência de três horas de apresentação, seis membros da equipe curatorial de Adam Szymczyk revezaram-se com burocratas para apresentar os diversos layers conceituais da mostra. Mas foi o curador Bonaventure Ndikung, nascido em Camarões e residente em Berlim, quem demarcou os principais preceitos da mostra: colocar a crise dos refugiados do meio oriente no centro do debate; questionar a divisão do mundo por “identidades”; promover a escrita de histórias “contra-hegemônicas” e reconhecer a incerteza como um retrato do nosso tempo. Um sinal dos tempos, duas das palavras de ordem que orientaram Bienais de São Paulo neste milênio – mais precisamente a  32ª e a 27ª –, ressoaram repetidamente nos discursos curatoriais: a incerteza e o “viver junto”.

Com obras de cerca de 150 artistas e coletivos ao longo 31 museus, espaços culturais e locais abandonados, a Documenta exige do visitante a disposição ao deslocamento e à interlocução com a cidade, seus acervos, sua história e, principalmente, as histórias de poder e dominação que envolveram as relações entre a Alemanha, a Europa e o mundo.

Nas sub-curadorias distribuídas pela cidade, contrapõem-se teorizações sobre expedições coloniais de séculos passados com movimentos migratórios decorrentes das guerras atuais; conflitos do mundo árabe versus os desastres da Europa moderna; revisões críticas do nazismo em tempos de novos extremismos; o estado transitório dos corpos e da sexualidade contemporânea em paralelo às transformações das instituições museológicas.

Ocupação de Pavilhão de Vidro, do coletivo Joar Nango
Ocupação de Pavilhão de Vidro, do coletivo Joar Nango

 

No movimento de varredura geográfica da cidade, é particularmente interessante a ocupação dos “pavilhões de vidro” da Kurt-Schumacher-Strasse. Em vez da casa de vidro da arte e arquitetura moderna de Bo Bardi ou Dan Graham, ou de vistosos pavilhões ao modo das exposições universais do século 19; o que se encontra ali são seis galerias comerciais desativadas, em estado precário de conservação, em uma região da cidade fronteiriça com comunidades imigrantes da Turquia, Etiópia e Bulgária.

Nassid’s Bakery (2017), de Mounira Al Solh
Nassid’s Bakery (2017), de Mounira Al Solh

 

Os projetos artísticos ocupantes são irregulares, com momentos altos nos trabalhos de Mounira Al Solh (Nassid’s Bakery) e do coletivo escandinavo Joar Nango, formada por arquitetos, carpinteiros e músicos. Eles foram os responsáveis por fabricar a primeira “obra” exposta: o púlpito onde discursaram os oito responsáveis pela D14.

Real Nazis (2017), de Piotr Uklánski
Real Nazis (2017), de Piotr Uklánski

 

A Neue Gallery – que ganha centralidade nesta 14ª edição, ao ser configurada como espaço de memória e “autoconhecimento das forças históricas que tornaram a Documenta possível” – expressa bem as tensões históricas a que a documenta se propõe. Logo na primeira sala do museu, frente a frente, encaram-se Real Nazis (2017), instalação de Piotr Uklánski, uma galeria de retratos dos monstros do século 20, e Planting of Trees (1971), pintura do albaniano Edi Hila, que por trás de uma cena campestre aparentemente inofensiva e naïf escondem-se vidas caladas por um regime totalitário.

 

Assim como a tentativa de plantio de Hila, descobrem-se na Documenta momentos sublimes de construções poéticas sobre o desastre. Como os escombros de barcos – memória trágica das migrações mediterrâneas – transformados em instrumentos musicais pelo mexicano Guillermo Galindo, exibidos na Documenta Halle. Há também a potência da insubmissão, expressa na vídeoinstalação Monday (2017), do coletivo Iqhiya, de Cape Town, montada em uma estação de metrô desativada. O trabalho mostra um furioso protesto de alunos em sala de aula e traça um insuspeito paralelo aos acontecimentos vivenciados recentemente por estudantes secundaristas em São Paulo, em reinvindicações por melhorias da educação. A residência artística Capacete (RJ) é o único participante brasileiro da Documenta 14, em Atenas.

As ressonâncias que as propostas da Documenta 14 assumem em diversos campos da vida contemporânea fazem pensar por que a curadoria não teria encontrado, entre artistas brasileiros, uma pesquisa que pudesse vir a contribuir em seus debates. Por outro lado, a presença da arte contemporânea grega apresenta-se excessiva e problemática.

Detalhe da exposição no Fridericianum
Detalhe da exposição no Fridericianum

 

Ao “importar” grande parte da coleção do Museu Nacional de Arte Contemporânea da Grécia, instalando-a no edifício-símbolo da Documenta, o Fridericianum, o curador polonês Adam Szymczyk quer enfatizar sua tese de que “desaprender tudo o que acreditamos saber é o melhor começo”, como declarou na conferência de abertura, bem posicionado atrás do púlpito de peles e neon do coletivo nórdico.

A participação de Atenas como tema e sede da D14 tem varias camadas de sentido. As primeiras razões alegadas dizem respeito ao papel de mediação que a Grécia tem no processo migratório de refugiados sírios. Mas o que se vê em Kassel é uma coleção de obras com muitas fragilidades. Além disso, diferentemente de outros grupos de artistas, colocados em circulação e respirando entre espaços e conceitos, os artistas gregos estão “ilhados” no Fridericianum, talvez tanto quanto o país esteja, desde que mergulhou na pior crise econômica entre os membros da UE.

“Aprendendo com Atenas” é uma mostra altamente autorreflexiva, de fortes colocações. Mas apesar de seus momentos altos, seu discurso nem sempre encontra eco nas obras expostas. Nesse sentido, parece conter mais a exposição de um statement curatorial do que a livre expressão dos estados da arte atual.

Resolvem bem a complexa proposta da curadoria, no entanto, projetos comissionados, realizados por artistas convidados a pensar as relações pós-coloniais entre Grécia e Alemanha em residências entre Atenas e Kassel. Caso do duo Prinz Gholam, autor da série Speaking of Pictures (2017), espécie de videodiário de relações corporais estabelecidas entre os artistas com monumentos gregos e alemães.

Serviço
Documenta 14
De 8/4, em Atenas, até 17/9, em Kassel