Há alguns anos, estive em Manaus para entrevistar a artista e bióloga Uyra para a série documental Metarreal. Guardei uma informação superimportante daquela entrevista que, no filme, passou meio batida, mas que no contexto desta edição da celeste encontra o momento de ser retomada. Uyra diz: “O que não falta na beira dos igarapés são plantas que absorvem metais pesados. Plantas de remédio, tecnologias ancestrais”. Isto se chama fitorremediação. Impulsionada por outro achado superimportante que fiz recentemente – as macroalgas –, avancei nessa pesquisa sobre a fitorremediação e descobri que estudos realizados pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) identificaram que a planta aquática Alocasia macrorhiza, conhecida como orelha-de-elefante-gigante, pode ser usada para a descontaminação do solo e da água poluída por produtos químicos. A planta tem a capacidade de absorver metais pesados como cádmio (Cd), cobre (Cu), chumbo (Pb), níquel (Ni) e zinco (Zi) e começou a ser testada por cientistas para o tratamento de águas contaminadas de igarapés de Manaus.
Embora pesquisas científicas de ponta nem sempre encontrem eco em políticas públicas, o mesmo não pode ser dito sobre a receptividade de artistas a elas. Tive conhecimento do trabalho da britânica Julia Parks no livro The Kelp Congress [O Congresso da Macroalga], publicação editada pelo Lofoten International Art Festival (LIAF 2019), a mais antiga bienal da Escandinávia, que acontece em localidades diversas do arquipélago norueguês de Lofoten. Em 2019, Parks levou para o LIAF o relato de sua experimentação com algas marinhas e cinema, realizada no âmbito de uma pesquisa envolvendo as relações entre paisagem, comunidades, plantas e indústria. Interessada em usar materiais coletados diretamente dos lugares em que realiza seus filmes, Parks desenvolveu para os projetos BBC Bladderwrack (2018) e BBC Countryfile (2021) uma película de 16 mm a partir da mistura de algas, vitamina C e refrigerante.
Entre as dezenas de pesquisas do congresso, o trabalho de Parks interessa particularmente à celeste porque cria um elo imprevisto entre as macroalgas polares e aquelas que periodicamente infestam o Pinheiros, o rio urbano paulistano que esta edição da revista se dedica a psicogeografar. Sem ser seu intuito, o trabalho expõe a dialética de vida e morte envolvida na existência desses organismos fotossintéticos que não são plantas e não pertencem ao reino vegetal. Macroalgas [kelp] são ecossistemas subaquáticos – entre os mais diversos dos oceanos – formados em águas rasas, costeiras, frias, em geral próximas aos polos e ricas em nutrientes. Seu emaranhado de diferentes espécies, entre elas Laminaria digitata, Saccharina latissima, Ficus vesiculous e Ficus spiralis –, formam um hábitat perfeito para milhares de espécies de invertebrados, peixes e outras algas.
TECNOLOGIAS ANCESTRAIS
“Quando comecei o projeto, não havia considerado o uso de algas marinhas através das lentes da radioatividade ou da poluição, no entanto, usar um material diretamente do Mar da Irlanda, 40 milhas ao Sul de Sellafield, me levou a reconsiderar as histórias envolvendo a usina”, escreve a artista, que vive próxima à primeira usina atômica construída no Reino Unido para a produção de plutonium para armamentos nucleares. “Sua história estava repleta de vazamentos tanto em terra quanto em mar”, continua ela. “Assim como as plantas, as algas marinhas podem acumular compostos tóxicos da água em que crescem, incluindo isótopos radioativos e metais pesados. A agência ambiental usa algas marinhas em seus testes de radioatividade no ambiente local e encontrou níveis mais altos ao longo deste litoral. Por exemplo, o Tecnécio-99, um isótopo criado principalmente pela fissão de urânio, pode ser rastreado até Sellafield e ser encontrado em algas marinhas juntamente com um coquetel completo de outros isótopos.”
Algas são termômetros e remédios contra a radioatividade. No mesmo texto, Parks aponta que um aumento considerável na venda e no consumo de algas foi rastreado depois dos desastres nucleares de Fukushima e Chernobyl. Os comprimidos de iodo derivado de algas ajudam a reduzir a absorção do iodo-131 radioativo pelo corpo humano. Ingrediente ativo no revelador fotográfico, o iodo é também um eixo central da experimentação da artista com cinema e algas. “Um dos primeiros usos do iodo foi feito pelo inventor da fotografia Louis Daguerre (1787-1851) na preparação de chapas fotográficas tratando-as com os vapores de iodo derivado de algas marinhas”, anota.
Em 2019, na ocasião do Kelp Congress, Parks começou a colaborar com a artista norueguesa Kajsa Dahlberg, que estava interessada em usar as algas dos fiordes perto de Oslo para a produção de um filme. Nessa colaboração Parks descobriu que ao longo da costa norueguesa toda uma indústria foi criada nos séculos 18 e 19 a partir da queima de algas. As cinzas de algas eram exportadas para a Inglaterra e a Escócia e usadas para a produção de vidro e sabão. No início do século 20, foram usadas para a produção de iodo. Comunidades locais têm lutado para salvar os bancos de algas da colheita mecânica por grandes corporações que veem as algas marinhas como recurso de exploração extrativista. “Recentemente, descobri que uma forma de colheita mecânica de algas marinhas foi desenvolvida pela primeira vez na Califórnia durante a Primeira Guerra Mundial. O rico suprimento de ‘Giant Kelp’ da Califórnia foi usado para produzir potássio, acetona e outros produtos químicos com vistas à fabricação de explosivos”, conclui Parks.
OXIGÊNIO, VIDA E MORTE
Florestas são as grandes responsáveis pelo equilíbrio climático do planeta, mas elas não bastam. A Floresta Amazônica deve dividir o crédito de pulmão do mundo com as florestas de macroalgas, hoje reconhecidas como um recurso de reação à crise ambiental. Florestas de macroalgas extraem carbono da atmosfera e exalam oxigênio. Cerca de 50% do oxigênio que respiramos é gerado por organismos fotossintetizantes marinhos, incluindo as microalgas, como fitoplânctons. A fotossíntese realizada pelas algas envolve a conversão de dióxido de carbono (CO₂) em oxigênio (O₂) com a ajuda da luz solar. Esse processo não só nutre as cadeias alimentares aquáticas como também ajuda a regular os níveis de CO₂ na atmosfera, desempenhando um papel relevante no controle das mudanças climáticas. E sua importância vai além da fotossíntese. As algas são vitais para os ecossistemas marinhos e terrestres, formando a base da cadeia alimentar dos ambientes aquáticos.
Mas o aparelhamento dos corpos hídricos em função das necessidades da sociedade industrial e bélica ocasiona o reverso dessa condição. O que é vida torna-se morte. A poluição urbana é o principal responsável pelo fenômeno da eutrofização, isto é, a proliferação descontrolada de algas em represas e cursos de rios, que pode levar a vários problemas ambientais. Além da retenção de toxicidade, a decomposição das algas em excesso consome grandes quantidades de oxigênio da água, um processo que pode levar à hipóxia ou anoxia, a falta de oxigênio nas águas. Isso cria zonas mortas nos oceanos, lagos, represas e rios, onde a vida aquática não consegue sobreviver. A toxicidade das algas produz a liberação de substâncias nocivas, conhecidas como cianotoxinas, que envenenam e causam a morte de animais e pessoas que entram em contato com a água contaminada.
Em São Paulo, a Represa Guarapiranga e o Rio Pinheiros são ecossistemas atingidos drasticamente pela eutrofização, que ocorre quando há um acúmulo excessivo de nutrientes, principalmente nitrogênio e fósforo, nas águas. Em seu processo de retificação e com o descarte de esgoto e resíduos industriais, o Pinheiros sofre com altos níveis de poluição, particularmente em pontos de águas mais calmas ou represadas, devido ao assoreamento. Isso intensifica o ciclo de degradação.
REDES
O Congresso de Macroalgas, realizado no arquipélago de Lofoten, em 2019, promoveu a compreensão dos impactos do modelo de produção capitalista sobre o meio ambiente e de como alimentar outros sistemas de pensamento em rede para tempos de crise ambiental e de conflito. Agregou artistas e pesquisadores de estudos indígenas, biologia, teoria da mídia, neurologia, música, pós-humanidades feministas e literaturas de humanidades ambientais, com foco nas chamadas blue humanities/oceanic humanities, que desdobram relações humanas e não humanas.
Trabalhos híbridos entre a pesquisa científica, artística e poética foram apresentados e desenvolvidos in loco em experimentações com som, filme, leituras, workshops, gerando obras sonoras, trabalhos em podcast, performance e este livro, a que tive acesso e que me oxigenou as visões de futuro. Entendi que macroalgas não apenas ocupam um terço das costas do planeta, constituindo o maior hábitat marinho. Macroalgas são uma ferramenta de navegação para pensar e reimaginar um mundo relacional. Um mundo com. São uma metodologia de produção de conhecimentos e práticas transversais e multidirecionais. São uma linguagem para novas convergências e práticas dialógicas e coexistenciais. São lições de práticas de cuidado, de interesse e curiosidade com o estranho e o não humano. São uma ética do envolvimento.
Nesse sentido, o Rio Pinheiros e esse arquipélago a 300 quilômetros ao norte do Círculo Polar Ártico, se tocam. Em tempo de extinção em massa, mudança climática e injustiça social, de racismo ambiental, devastação ecológica e polarização política, pensemos nas macroalgas.
*Colaborou Fernando Ribeiro Meirelles