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A Casa no Céu (2018), de Rochelle Costi [Foto: Cortesia Luciana Brito Galeria]
Postado em 01/08/2023 - 3:28
Uma exposição tem muitos sóis
Casa no Céu: Como uma exposição pode ser ao mesmo tempo homenagem, celebração, revisão e medida do tempo

Numa sexta-feira, 14 de julho, levando na bolsa notícias de um ciclone extratropical que passara no dia anterior por Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo, entro na Galeria Vermelho. Atravessar uma exposição em tal estado de espírito pode levar a confundir objetos e instalações com casas encharcadas, rolando morro abaixo. Fantasma #9 (2018), composto de fios elétricos soltos e lonas de plástico mal atadas a estruturas de aço, é uma instalação concebida por André Komatsu no ano em que a política brasileira desceu morro abaixo e se esfacelou no fascismo. No contexto presente, a obra me fala de fenômenos climáticos capazes de levantar casas pelos ares. Me adverte sobre a fragilidade dos assentamentos urbanos informais diante das intempéries da vida. As duas lâmpadas acesas do objeto-fantasma me reportam sobre pessoas desalojadas, vidas que resistem sob os escombros. Como estrelas entre densas nuvens em céu de tempestade.

Em uma exposição que tem o céu como disparador de conceitos e imagens, as condições meteorológicas associadas à crise climática tornam-se indistinguíveis daquilo que se apresenta em boa parte dos trabalhos da mostra Casa no Céu, curadoria de Eduardo Brandão e equipe Vermelho.

Não muito longe do Fantasma #9, na sala em que as obras replicam em tons cinzentos a atmosfera de vento e tormenta daquela semana, De Repente 1 (2021), serigrafia de Fabio Morais, funciona como um texto-legenda da situação corrente. “Estávamos acreditando nas regras, até que de repente”. A frase é reproduzida ao longo de sete linhas seguidas de texto e vai se desfazendo à medida em que avança. A cada linha, as letras vão perdendo a força de atração que as deveria manter presas umas às outras, soltando-se paulatinamente, gotejando como água, perdendo a solidez, desmanchando-se no ar.

Estávamos acreditando nas regras, até que de repente fez-se noite às três da tarde. Nos avisaram que o fenômeno paradigmático foi provocado pelo encontro entre uma frente fria e a fumaça de incêndios na Floresta Amazônica. Vieram avisar ainda que os assassinatos de indígenas quase dobraram e os conflitos aumentaram 567% durante o governo genocida.

Em meio à tormenta, incapacitados de aterrissar, aviões arremetem. Dentro da galeria, talvez no intuito de reter um pouco de realidade, a curadoria instala pedras no chão. Os bancos da Série Rio (2023), da ,Ovo_Luciana Martins + Gerson Oliveira, produzem no espaço uma sensação de aterramento, de escoramento do céu. Sentados sobre pedras, observamos, através da palha do telhado da maloca, na fotografia Yanomami – da série A Casa (1974-1976), de Claudia Andujar, a luz forte que vem do alto.

Céu rachou enorme/ Céu rachou todo/ Tudo acabou/ Longe do céu pés/ Céu escorado/ O céu sobreposto/ Céu suspenso (Fragmento de Começo do Mundo 1 – Mitopoemas Yanomami)

Fantasma #9 (2018), de Andre Komatsu [Foto: Edouard Fraipont / Cortesia Galeria Vermelho]
De Repente 1 (2021), de Fabio Morais [Foto: Filipe Berndt / Cortesia Galeria Vermelho]

O modo como os trabalhos estão montados, uns sobre os outros, no cubo da Vermelho, sugere a elevação do olhar. Nesse movimento, chega-se a pensar em alçar o espaço sideral. O som que vem do alto convida à subida. No céu da galeria, que é a sala do primeiro andar, o ar já não é tão espesso, tão impregnado de água, tão prismático. Mas a tempestade é reminiscente no barulho de goteira de Chora Chuva SP (2017), de Motta & Lima.

Detalhe de Chora Chuva SP (2017), de Motta & Lima [Foto: Leandro Lima / Cortesia Galeria Vermelho]

Time to Get Heroe (1988), de Leonilson [Foto: Gabriel Zimbardi / Cortesia Galeria Vermelho]
Há azuis por todos os lados, mas predomina o vermelho. A flutuação de uma cadeira no céu é uma ilusão no Vídeo #14 (2006), de Amilcar Packer. O que parece uma dança celeste é, na verdade, uma queda livre. Dois corpos – da cadeira e do artista – em pas de deux, se deixam cair em movimento centrípeto. A pintura Time to Get Heroe (1988), de Leonilson, e o lasergrama A Queda, Kôln (1996), de Mario Ramiro, somam-se ao mergulho gravitacional no céu da galeria.

Detalhe de A Queda, Kôln (1996), de Mario Ramiro [Foto: Cortesia Galeria Vermelho]

EM ÓRBITA
Visitar uma exposição pode ser como andar na floresta. Todas as referências podem ser perdidas. Dizem que andar na floresta pode ser como andar em círculos; orbitar algo desconhecido.

Um caminho para evitar a perda total da orientação seria dobrar os caules das plantas pra trás: As faces das folhas, quando bate luz, produzem reflexos prateados que formam uma trilha cintilante na mata. Pra quem sabe ler. (Carelli, Terrapreta, 12).

Tudo é uma questão de luz. E calor. Dissimulado entre ripas de uma suposta cerca urbana, Sol (2023), de Nicolás Robbio, sugere que o dia está nascendo. O aquecimento do planeta intensifica o temperamento imprevisível do céu. Na metade do século 21, haverá partes do mundo não habitáveis pelo ser humano, dizem os cientistas.

Em janeiro deste ano, em capítulo da corrida espacial pela colonização dos planetas do Sistema Solar, o Centro de Ciências Astrogeológicas da USGS, dos EUA, divulgou três mapas de Marte com o maior grau de detalhamento já realizado. A semelhança com os mapas da Terra é desconcertante. Nos desenhos, pode-se visualizar Olympus Mons, o maior vulcão já descoberto em todo o Sistema Solar, e os indícios de um passado aquoso do planeta vermelho: áreas secas de alta deposição sedimentar, mas com a sinuosidade característica dos rios.

Seguimos em círculos na exposição, em que estrelas e planetas se chocam, se engolem ou, eventualmente, são contidos nas palmas das Mãos (2017), de Lia Chaia, e em Duplo Figurado – Esfera Vermelha (2014-2017), de Flavia Ribeiro. Ou contidos nos limites de um quadrado – Sem título – Caixilho com Duas Esferas (1982-2010), de Valdirlei Dias Nunes.

Um meteoro, tão quente, que é impossível segurá-lo nas mãos. (Woolf, Orlando, 279)

Na mão direita do autorretrato de Tiago Sant’Ana, a lua cheia está a ponto de ser atirada ao outro lado do universo – Perigeu – Autorretrato com Lua Cheia (2022).

Caixilho com Duas Esferas (1982-2010), de Valdirlei Dias Nunes [Foto: Filipe Berndt / Cortesia Galeria Vermelho]
MEMÓRIA
Visitar uma exposição pode ser como ler um livro ou olhar uma paisagem. Ler o céu refletido no rio. Ler o céu refletido no mármore – Quatro Coordenadores Topocêntricos É a Construção de um Possível Horizonte Breve (2019), de Lais Myrrha.

Visitar uma exposição pode ser como ler uma biografia. É preciso lembrar que esta é uma exposição sobre a fotografia, porque comemorativa dos 21 anos de uma galeria que nasceu para pensar os deslimites entre a fotografia e as demais linguagens artísticas; ver que a luz rebate, reincide e redesenha em lugares imprevistos.

Pies Para Qué Los Quiero Si Tengo Alas Para Volar (2022), de Dora Longo Bahia [Foto: Filipe Berndt / Cortesia Galeria Vermelho]
Como a pintura de pássaros caídos, de Dora Longo Bahia – Pies Para Qué Los Quiero Si Tengo Alas Para Volar (2022).

Pintura sobre as páginas do roteiro de uma aula que disserta sobre a tensão entre verdade e ficção na relação entre fotografia e pintura.

Ao pensar deslimites, a exposição quer ainda extravasar as bordas da própria galeria, assimilando na curadoria artistas de outros sistemas solares, outras constelações, outras galerias. São 66 artistas em sete salas (céus).

Algumas coisas ficavam mais próximas, outras mais distantes, se uniam e se separavam, formando as mais estranhas alianças e combinações num incessante xadrez de luz e sombra. (Woolf, Orlando, 280)

VISITAR UMA EXPOSIÇÃO PODE SER COMO ANDAR NA FLORESTA. TODAS AS REFERÊNCIAS PODEM SER PERDIDAS. DIZEM QUE ANDAR NA FLORESTA PODE SER COMO ANDAR EM CÍRCULOS; ORBITAR ALGO DESCONHECIDO.
Sol (2023), de Nicolás Robbio [Foto: Filipe Berndt / Cortesia Galeria Vermelho]
Duplo Figurado – Esfera Vermelha (2014-2017), de Flavia Ribeiro [Foto: Cortesia Galeria Vermelho]
Mãos (2017), de Lia Chaia [Foto: Filipe Berndt / Cortesia Galeria Vermelho]
Perigeu (Autorretrato com Lua Cheia) (2022), de Tiago Sant’Ana [Foto: Tiago Sant’Ana / Cortesia Galeria Vermelho]
VISITAR UMA EXPOSIÇÃO PODE SER COMO LER UM LIVRO OU OLHAR UMA PAISAGEM.

Uma curadoria assim também pode ser comparada à memória. A julgar pelos desenhos que faz no espaço, pelo modo com que move as peças do jogo, é o retrato de uma vontade, um determinado estado de espírito presente, jogando com as peças do tempo. Como um jabuti orbitando o deus do Tempo, junto aos anéis, em Yauti in Heavens (Saturno) (1988-1989), de Regina Vater.

Em todo seu esforço de memória, é uma exposição do tempo presente, que encontra no caminho outro motivo vital de ser: um outro Sol, materializado na fotografia Casa no Céu (2018), de Rochelle Costi. E então se propõe uma homenagem.

Ao mesmo tempo homenagem, celebração, revisão e medida do tempo, uma exposição tem muitos sóis.

O certo é que, por mais que juremos que estamos avançando em linha reta, acabamos fazendo uma lenta e larga curva até voltarmos ao ponto de partida. (Carelli, Terrapreta,11)

Na entrada da galeria, ponto de partida, no olho do ciclone, reencontramos a relatividade do tempo na régua torta de Cinthia Marcelle – Na Medida das Coisas (2009).

E então, tenta-se zerar tudo e recomeçar. (Carelli, Terrapreta, 11).

No escuro, não há fotografia. Mas o céu permanece claro durante a noite.

Yauti in Heavens (Saturno) (1988-1989), de Regina Vater [Foto: Danilo Kim / Cortesia Galeria Vermelho]