O néon multicolorido de Avaf e o texto holográfico de Adriano Pedrosa e Julia Bryan-Wilson recebem os visitantes na exposição do Masp, Histórias LGBTQIA+. A exposição integra a tradição, iniciada em 2016 com Histórias da Infância, na qual o Masp se propõe a revisar e/ou revisitar histórias de grupos sociais historicamente minorizados.
Na fachada da exposição, somos imediatamente deslocados para um universo de festejo e celebração, remetendo às Paradas de orgulho LGBTQIA+, que periodicamente atravessam a mesma avenida paulistana na qual o Masp está sediado. Ao entrarmos, o ambiente transforma-se em uma atmosfera intimista, própria do jogo público-privado inerente à pauta. Uma longa mesa com pelugem rosa dispõe de publicações familiares a mim. Me chama atenção o livro Nuestros Códigos – coincidentemente carrego um broche do mesmo livro em minha bolsa carmim –, compilado pelo Archivo Trans Argentino, que teve uma importante participação na Bienal de São Paulo de 2023.
No núcleo Ícones e Musas, sou novamente bombardeado com imagens com as quais me identifico. O retrato de Roberta Close, reconhecida modelo que abalou a sociedade cisgênera na década de 1980, feito por Adir Sodré, destaca-se com cores vibrantes e falos saltitantes. O que chama atenção não é a enorme quantidade de falos, própria do trabalho de Sodré, tampouco a visão objetificada de Roberta Close, recorrente no imaginário cisgênero. Não, o que me chama atenção é a legenda holográfica que alerta os visitantes justamente sobre a representação deturpada de Sodré, indiretamente convidando o público a fazer uma comparação com o autorretrato em bronze da renomada escultora Puppies Puppies. A diagonal dessas duas representações é um verdadeiro expectativas versus realidade.
A segunda parte da exposição dá-se no subsolo, onde 13 arquivos do Sul Global são apresentados em grandes televisões que transmitem gays libaneses, travestis bolivianas e lésbicas argentinas lutando pelo aborto legal. A expansão da presença de arquivos em mostras ao redor do mundo é uma tendência que merece perdurar por muitas gerações. As imagens dessas pessoas, de ingressos de shows de Madonna, de camarins, montações e manifestações são registros de uma história considerada como lado B. O núcleo Arquivos é uma introdução para o público que não se vê naquelas imagens e, sobretudo, uma retomada para nós que raramente conseguimos traçar uma linha histórica da comunidade LGBTQIA+.

O poder do não dito
Há tempos discussões borbulham sobre o poder das abstrações para grupos minorizados que são arrastados pela onda capitalista da representatividade. O poder do oculto, do não dito, dos mistérios entre aquilo que se vê e aquilo que é é uma arma poderosa. Escapar da representatividade compulsória, um local onde somos fadados a discutir apenas os recortes que nos atravessam, é um ato de coragem. Instintivamente, sou atraído pelas abstrações de Tadáskía, primeira artista a pintar as paredes do MoMA-NY, onde duas formas coloridas parecem engolir uma à outra e cujo título coroa um sonho chamado kissed black trans ladies kissing [mulheres trans negras beijadas se beijando]. O núcleo Abstrações reúne artistas que não apenas corrompem expectativas de gênero e sexualidade, mas caminham por territórios desconhecidos.
A realidade latente da comunidade LGBTQIA+, sobretudo para pessoas racializadas e trans, muitas vezes nos cerceia no direito de sonhar. Por isso, a seção Ecossexualidades e Fantasias Transcendentais finaliza a exposição como um grito evocando o direito de sonhar. A tela hipnotizante de Samantha Nye revela um universo no qual mulheres banhistas convivem em harmonia sáfica, já a foto de Rafa Bqueer e A TRANSÄLIEN propõe um mundo pós-gênero metamórfico.
Constantemente me deparo com exposições que se propõem a debater a questão LGBTQIA+, nas quais as letras que prevalecem são o G, e quando muito, o L. Quando o debate em torno da população T é levantado, de duas uma: são exposições sobre dor e violência ou são retratos exotificantes de mulheres trans e travestis. Histórias LGBTQIA+ não deixam de ser uma visão do outro sobre nós, apesar de o corpo curatorial não ser composto apenas de pessoas cisgêneras, porque há o gaze externo às narrativas trans e travestis ali representadas. Mas essa não é uma exposição apenas sobre pessoas trans e travestis, é sobre uma comunidade com muitas contradições, e posso dizer que, apesar de estarmos falando do olhar do outro sobre nós, a curadoria teve muito cuidado para não recair nos dois polos que citei anteriormente.
Temo recortes curatoriais amplos. Em 2019, dediquei boa parte do tempo fazendo uma iniciação científica com duras críticas à exposição Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana 1960-1985, curada por Cecilia Fajardo Hill e Andrea Giunta. A grande questão das revisões históricas é o recorte enviesado pelas perspectivas de seus curadores que, usualmente, optam por dar luz a histórias que foram mal contadas, mas raramente às histórias nunca contadas. Surpreendentemente, esse cenário não é o que encontramos em Histórias LGBTQIA+, que finaliza com elegância o ano que o Masp dedicou às Histórias da Diversidade LGBTQIA+, em 2024.
SERVIÇO
Histórias LGBTQIA+
Masp, Av. Paulista, 1.578, masp.org.br/
Até 13/4