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Vista com destaque para João e Carlos, da série Brasília, Enfim (2022), de Christus Nóbrega e IA generativa [Foto: Paula Alzugaray/ celeste]
Postado em 24/04/2025 - 1:59
Uma novela a ser escrita
Do analógico à IA, Delírio Tropical, na Pinacoteca do Ceará, investiga materialidades e conceitos das imagens e dos imaginários de Brasil

Um facão agilmente manipulado por uma mulher indígena toca o rosto do diretor da empresa estatal de eletricidade responsável pela construção da hidrelétrica de Belo Monte (PA). Massivamente reproduzida por jornais do Brasil e do mundo, a fotografia de Protásio Nêne, da agência Estadão Conteúdo, registrando o acontecimento em Altamira, em 1989, contribuiu para paralisar as obras da usina por 20 anos e converter o gesto da liderança indígena Tuire Kayapó em um símbolo da resistência e luta por direitos dos povos indígenas.

A fotografia de Nêne não está na exposição Delírio Tropical, curadoria de Orlando Maneschy e Keyla Sobral para a terceira edição do Fotofestival Solar na Pinacoteca do Ceará, em Fortaleza. Mas o facão de Tuire é o referente iconográfico das imagens da série Resistência, de Sallisa Rosa, distribuídas ao longo dos vários segmentos expostos em uma das galerias da instituição, inaugurada em 2022 para salvaguardar e expor a coleção de arte do Estado.

Sem título (2017), da série Resistência, de Sallisa Rosa [Foto: Paula Alzugaray]
Entre 2017 e 2019, a artista goiana fotografou os facões usados por familiares e amigos em trabalhos do dia a dia no campo ou na cozinha. Como que reproduzindo a dinâmica de grande circulação da imagem de Tuire, Rosa imprimiu suas fotografias em lambes e as espalhou por muros das cidades. É também disto que se trata esta exposição: da reprodução, circulação, difusão e reminiscência de imagens que contribuem para a formação de uma ideia de Brasil que não cessa de se formar. Um Brasil, segundo Maneschy, “fragmentado, inconcluso e plural”.

Por um Fio, da série Fotopoemação (1976), de Anna Maria Maiolino; e Corda Dourada com Minha Mäe Elenice Guarani, Minha Tia Marilucia Moraes, Minha Võ Maria da Graça e Minha Tia Gracilene Guarani (2020), de Tadaskia, com intervenção gráfica de Nina Lins para a seLecT_celeste nº 57

Terra em transe

A exposição nos coloca diante de um repertório de emblemas e iconografia do que possa ser entendido e imaginado como Brasil. “Imagens-fundamento”, define Maneschy à celeste. Há imagens que estão no inconsciente coletivo brasileiro e funcionam como lastros, farois que atraem a atenção do espectador, para logo redirecioná-lo, iluminando manifestações artísticas menos conhecidas. Um mérito da curadoria é expografar como os cânones da arte e da mídia são rebatidos em outras geografias e gerações.

O estudante empurrado por policiais em uma manifestação de rua, na fotografia de Evandro Teixeira tirada em 1968, é um referente iconográfico da violência do regime militar. A cobertura de Rosa Galditano de passeatas de mulheres contra o feminicídio (1978-1984) é um referencial histórico para artistas que trabalham com feminismo, arte e política. Sonia Braga fotografada por Antonio Guerreiro para o cartaz do filme Eu te Amo (1981), de Arnaldo Jabor, é um signo erótico nacional; assim como Roberta Close nas páginas de uma revista masculina dos anos 1980 e o biquini de Gal Costa na capa do disco Índia (1973).

A Mesma Luta (1978-1984), de Rosa Gauditano [Foto: Paula Alzugaray/ celeste]
No ano em que Belém sedia a COP-30, cabe lembrar de Atentado ao Poder (Via Crúcis), 1992, de Rosângela Rennó, instalação com imagens de 13 homens assassinados diariamente no período em que o Rio de Janeiro recebeu a conferência ambiental Rio-ECO 92. A obra é o incontestável emblema de um Brasil de política social higienista, de marginalização e extermínio da maioria de sua população. Posicionada no último nicho do espaço expositivo, a instalação de Rennó trava forte diálogo com a pintura do paraense Éder Oliveira, que explora por meio do retrato a dignidade de grupos sociais discriminados. Em Delírio Tropical, Oliveira está representado pela pintura em grande formato Quintino (2023), que fabula o mito do agricultor justiceiro que defendeu o direito à terra com a luta armada.

Acima, Sem título (2017), da série Resistência, de Sallisa Rosa; abaixo, Caça ao Estudante, Sexta-Feira Sangrenta (1968), fotografia de Evandro Teixeira
Atentado ao Poder (Para a Rio-92, a Cúpula da Terra) (1992), de Rosângela Rennó [Foto: Paula Alzugaray/ celeste]

Outros diálogos intergeracionais se formam a partir de Poder, da série Carnaval (1972-1976), de Carlos Vergara, e Por um Fio, da série Fotopoemação (1976), de Anna Maria Maiolino. Em uma espécie de reescrita da história, a foto de foliões politizados do bloco Cacique de Ramos, no Carnaval do Rio, se traduz e atualiza para o contexto LGBTQIA+ do século 21 nas três travestis racializadas em Poder y Gloria (2022), de Vulcanica Pokaropa.

Em outra inflexão sobre o emblema Por um Fio, no qual Maiolino liga três gerações de mulheres de uma família, temos a fotoperformance Corda Dourada com Minha Mãe Elenice Guarani, Minha Tia Marilucia Moares, Minha Vó Maria da Graça e Minha Tia Gracilene Guarani (2020), de Tadáskia. Relações estas que já haviam sido traçadas na reportagem Arte em Primeira Pessoa, de Juliana Monachesi e Luana Rosiello para a seLecT_celeste nº 57 (março de 2023), que investiga pesquisas artísticas inseridas em um contexto testemunhal.

Espacialmente relacionadas às fotoperformances de Tadáskia e de Maiolino, as duas fotoperformances de Lys Vedra, da série Abocanhar e Cuspir (2022), também têm a boca como elemento condutor. Em conversa com a celeste, a artista disse reconhecer seu trabalho atravessado por questões de corpo, ancestralidade e natureza. “Tenho referenciais em Lygia Clark e Hélio Oiticica, mas produzo a partir de meu contexto que é, como uma pessoa trans, travesti, pesquisar e buscar formas de afirmação e existência”, diz Lys Vedra.

Imprevisibilidade

Delírio Tropical pode ser lida como um texto autoral. Por mais visceralmente relacionadas que estejam, as imagens da exposição não estão necessariamente agrupadas em nichos temáticos ou cronológicos. Aqui reside um dado corajoso da curadoria, que produz no espaço uma narratividade bastante libertária.

“Delírio Tropical é nome de novela não escrita”, responde Maneschy quando lhe pergunto sobre a origem do título. Nessa “novela” – literária ou televisiva, os dois gêneros se aplicam à exposição –, os curadores buscam compreender o poder da imagem na formação do imaginário nacional.

Sem título (2023), da série Rebojo, de Labô Young [Foto: Paula Alzugaray/ celeste]
Qualquer que seja o percurso de leitura assumido pelo visitante – da esquerda para a direita, em linha reta, ou em derivas –, o texto se dá por repetidos espelhamentos e rebatimentos entre linguagens, gerações e geografias , formando um retrato, mais do que caleidoscópico, vertiginoso da arte contemporânea brasileira, composto por obras de 133 artistas. O percurso se compõe em narrativas nada previsíveis e fartas de sentidos, que se apresentam, por exemplo, na aproximação ruidosa entre um documento da repressão ditatorial e uma fotocolagem que alude a uma religiosidade pós-apocalíptica – obra de Ventura Profana.

Ou na imprevisibilidade de ver refletida na música Sol de Plumas, da banda No Porn (Liana Padilha e André Lima) – que soa alto em nicho central da exposição –, a Floresta Amazônica da foto da capa do disco Tamba Tajá (1976), de Fafá de Belém, e das fotoperformances de Labô Young. Música é imagem.

A CURADORIA VAI BUSCAR NA EPHEMERA – MATÉRIA IMPRESSA, TRANSITÓRIA, DE CURTO PRAZO, QUE NÃO É FEITA COM INTENÇÃO DE SER PRESERVADA – UM DOS FUNDAMENTOS DO IMAGINÁRIO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
Capa de Tamba Tajá, disco de Fafá de Belém (1976), de João Castrioto [Foto: Paula Alzugaray/ celeste]

Transitoriedade

Sendo o Fotofestival Solar um “espaço paradigmático para a reflexão acerca das questões do fotográfico”, segundo descrevem os curadores Maneschy e Sobral, soma-se à constelação de pautas do enredo desta novela por ser escrita – crítica à colonialidade, corpos insurgentes, ancestralidades, memória – a pluralidade de materialidades e conceitos acerca da imagem e do imaginário. Com uma concepção de imagem que transcende o fotográfico e retorna ao pictórico e ao objeto, a curadoria vai buscar na ephemera – matéria impressa, transitória, de curto prazo, que não é feita com intenção de ser preservada – os fundamentos do imaginário brasileiro contemporâneo.

Sonia Braga fotografada por Antonio Guerreiro para o cartaz do filme Eu te Amo (1981) [Foto: Paula Alzugaray/ celeste]
“Compreendemos que os impressos e as revistas foram fundamentos para nossa experiência social. Não podemos negar o poder da mídia na elaboração de verdades e mitos”, diz o curador. Aqui se incluem catálogos, revistas, cartões postais, cartazes, capas de disco ou experimentações artísticas em arte xerox, como as praticadas por Hudinilson Jr. – e suas clássicas performances interativas com máquinas fotocopiadoras – e Lucas Bambozzi, com o Projeto Postcards (2000-2024), uma coleção de lugares turísticos registrados em vídeo.

Sexo e política até mais tarde

Mas talvez a mais intrigante discussão colocada aqui sobre a construção de realidades, mitos e verdades de Brasil esteja em uma imagem que passa quase despercebida, sem alarde. À primeira vista, João e Carlos, da série Brasília, Enfim (2022), elaborada por Christus Nóbrega “em parceria” com uma inteligência artificial, parece uma fotografia histórica. Digamos que ela deliberadamente se disfarça de fotografia documental. Poderia ter sido feita por Thomas Farkas, Marcel Gautherot ou qualquer um dos fotógrafos que registraram a construção de Brasília.

Porém, o beijo apaixonado entre os dois candangos, nomeados João e Carlos no título, anuncia, enfim, uma outra sociedade. Mais justa, mais amorosa, mais diversa. Uma sociedade imaginada e desejada que se vê refletida, em outro canto da exposição, na fotografia de Alair Gomes de um folião sexy com a camiseta “make love not war”. Duas imagens-fundamentos de uma curadoria que usa de jogos de espelhos e de artifícios para perguntar ao espectador: qual a sua imagem de Brasil?

 

Serviço
Delírio Tropical
Pinacoteca do Ceará
Rua 24 de Maio, Praça da Estação, s/n
Até 29/6/25


Paula Alzugaray viajou para Fortaleza para ver a mostra Delírio Tropical a convite da Pinacoteca do Ceará

Carnaval Anos 60 (c. 1960), de Alair Gomes [Foto: Paula Alzugaray/ celeste]