Mulherio é o nome do jornal feminista de mais longa duração dentro os lançados no decorrer do regime militar no Brasil. Fundado em 1981, em São Paulo, “colocava-se como porta-voz das mulheres, da emancipação feminina como um todo e do movimento feminista, além de noticiar e discutir temas variados voltados a questões sociais, políticas e culturais, sempre a partir de seus pontos de vista”, lê-se nos Anais da Biblioteca Nacional (vol. 140, 2020). O periódico, que circulou até 1988, dá título à exposição coletiva com contornos institucionais que a Danielian Galeria, no Rio de Janeiro, abriga até 11/2. Sob a curadoria de Viviane Matesco – doutora em artes pela UFRJ, que pesquisa há 20 anos o corpo na arte –, Marcus Lontra e Rafael Peixoto, respectivamente diretor artístico e curador da Danielian, a mostra reúne obras de 36 artistas brasileiras e promove uma reflexão sobre o feminismo no país.
As 60 obras que integram a exposição foram organizadas em três núcleos temáticos e não cronológicos: gesto, âmago e força. O primeiro reúne trabalhos em que o movimento do corpo fica plasmado, como as pinturas de Niura Bellavinha e Suzana Queiroga, nas esculturas de Celeida Tostes ou na videoinstalação de Analu Cunha. O segundo núcleo traz a presença de um corpo literal e de aspectos íntimos do corpo, como nas instalações e objetos de Ana Miguel, nas esculturas de Cristina Salgado, e nas intervenções olfativas de Josely Carvalho. O terceiro e maior núcleo trata de resistência, do corpo como via de transgressão, e nele estão, por exemplo, obras de Panmela Castro, Lyz Parayzo e Nazareth Pacheco.
De acordo com Viviane Matesco, a mistura de meios e gerações na curadoria permite entender como nomes históricos da arte brasileira abordaram o tema e se posicionaram sobre ele, ainda que não sob a bandeira do feminismo até os anos 1990. “O regime militar no Brasil fez com que as artistas se unissem aos demais em lutas políticas, portanto há uma diferença muito grande de conjuntura brasileira em relação à cena feminista na Europa e nos EUA, onde nomes como Gina Pane e Carolee Schneemann estavam fazendo obras tendo a sexualidade como ponta de lança nos anos 1960 e 1970”, afirma Matesco, em entrevista à seLecT_ceLesTe.
A curadora conta que, entre os alunos de mestrado e doutorado que na Universidade Federal Fluminense, onde é professora, as pautas identitárias – como estudos de gênero e raciais – permeiam a grande maioria das pesquisas. “Às vezes me pergunto se nunca mais vou dar aula sobre Cézanne”, diverte-se. A reorientação de pautas na universidade é sinal dos tempos, e coincide com a virada feminista (nas artes) nas primeiras décadas do século 21. “Antes disso, há inúmeros exemplos de mulheres intelectuais com posicionamento feminista, como Heloisa Buarque de Hollanda, Lélia Gonzalez e Ruth Cardoso, mas que não reverberaram nas artes visuais. Mesmo nos círculos dessas mulheres, havia preconceito e também machismo. A própria Heloisa trata disso no livro Feminista, Eu? [2022]. Hoje a conjuntura é outra”, diz Viviane Matesco. Mudou a universidade, os museus mudaram também e vêm abrigando exposições relevantes sobre o feminismo na arte brasileira, como Mulheres Radicais (Pinacoteca), Histórias Feministas (Masp) etc.
Na mostra na Danielian Galeria, a linha condutora do corpo propicia encontros felizes, como no diálogo entre a pintura Extirpação do Mal por Punção (1994), de Adriana Varejão, esculturas de Nazareth Pacheco feitas de lâminas cortantes, e a peça Bixinha (2019), de Lyz Parayzo, obras que aludem à experiência cortante de ser mulher. “A pele é onde a gente sofre e onde a gente goza. Esse elemento de contato entre o interior e o exterior informa os trabalhos das três artistas, ao mesmo tempo em que funciona como palco de denúncia da opressão. O vídeo Marca Registrada [1975], de Letícia Parente, está exposto perto desse conjunto de obras”, explica a curadora. Outro diálogo que ilumina a sororidade atemporal acontece entre o vídeo de Analu Cunha, Intenções e Gestos (2017), e esculturas da série Amassadinhos (anos 1990), de Celeida Tostes. Cunha filmou a colega de universidade Matheusa Passareli encenando os gestos presentes na pintura Combate Naval do Riachuelo (1883), de Vitor Meirelles. As mãos da jovem artista, morta tragicamente em 2018, repetindo gestos de ataque e defesa da pintura que representa um confronto naval da Guerra do Paraguai, espelham as mãos da artista de outra geração, amassando ritualísticamente a argila.

