Recentemente, lendo Libros Chiquitos, uma preciosidade da poeta e ensaísta argentina Tamara Kamenszain, me deparei com um verso de um conterrâneo seu que me pareceu muito pertinente. Diz Osvaldo Lamborghini: Os leitores chegaram/ a festa acabou. Talvez não seja a energia ideal para dar boas-vindas a esta nova coluna da celeste, que nem mesmo chega a ser uma coluna em seus moldes mais tradicionais – por isso vértebra: é uma parte da espinha dorsal que sustenta algo –, mas, nas circunstâncias atuais, não convém esperar por energias ou momentos ideais, e aqui estamos, às 22 horas de uma quinta-feira chuvosa de outono, fechando o guarda-chuva e dizendo: saudações.
Os versos de Lamborghini remetem a uma tradição que vê a escritura enquanto processo, elegendo-o como elemento elementar no lugar da concatenação bem-arranjada de ideias preexistentes. Quando indagado sobre seu processo de escrita, Beckett disse: “A coisa se organiza entre a mão e a página”. E não falemos da filosofia por trás de técnicas de pintura do Leste Asiático, como é o caso do sumi-ê, em que o que se avalia é a qualidade não do resultado, mas do gesto.
Lembro ainda de Mario Levrero que, com o intuito de começar seu mítico La Novela Luminosa (um cadáver aberto em 500 páginas, segundo Kamenszain), criara para si mesmo a imagem idílica de estar sentado confortavelmente à mesa, diante de uma folha de papel, escrevendo à mão com uma caneta de ótima qualidade; o único problema dessa imagem, dizia ele, é que não vinha jamais acompanhada do conteúdo daquilo que se supunha que estivesse escrevendo.
Citando outro argentino, também dia desses li uma entrevista com César Aira, em que, para explicar o segredo de seus mais de cem livros, saiu-se com a seguinte resposta: “Começar. As ideias surgem a partir do ato de escrever. Se não sei para onde ir, não posso parar e pensar, porque aí não sai nada”.
Comecemos, pois.
Aira tem me visitado no estúdio que habito em frente à nascente do Rio Água Preta – meu posto de observação –, orbitando temas que me interessa discutir desde que li, em seu excelente e irritante Continuación de Ideas Diversas, livro escrito em 2012, uma entrada em que ele especula a respeito de um “software maravilhoso” que consiste em converter qualquer sequência aleatória de caracteres fornecida pelo usuário em texto inteligível, ou, ainda pior, literário, gerando resultados que, em relação aos livros escritos do modo convencional, “não se diferenciam grande coisa”.
Pesquisador fervoroso e entusiasta de princípios surrealistas de criação como o do cadavre exquis, tanto a ponto de parecer querer torná-los a regra, não é de se surpreender que Aira, ainda que avesso a elas, tenha antecipado a presença hoje incontornável das ferramentas de processamento de texto por meio de Inteligência Artificial, tamanho estranhamento e resistência ambas as tendências causam nos agentes dos assim chamados “círculos literários”.
É um procedimento-padrão da linguagem – a literária – que, ao menos no Brasil, parece sempre relutante em aceitar que as mudanças do mundo, todas elas, a afetam, resultando em uma cadeia de narrativas datadas. É natural, pelo ritmo que é próprio da escritura, ao considerar o longo tempo que até o mais medíocre dos romances toma para ser escrito, que quando publicados os livros estejam falando de um mundo que já ficou para trás. É uma problemática recorrente, progressiva, e não se trata de “manter-se atualizado”, o que, pela via oposta, os incrustaria imediatamente no passado. Não, trata-se de entender – e aceitar – que a presença de tais ferramentas no cotidiano, queiramos ou não, promove mudanças profundas e significativas em nossa relação com a tecnologia, como é comum na invenção ou no aperfeiçoamento de qualquer tecnologia; a invenção do livro também promoveu mudanças nessa relação, afinal, é isto que é um livro, uma tecnologia, assim como o Kindle é uma tecnologia e igualmente o é o chatGPT. Também não se trata de aderir e aceitar simplesmente, pelo contrário: a história nos ensina que se aproximar e buscar compreender é uma postura muito mais crítica do que operar na chave da negação, atitude que, aí sim, admite que se seja arrastado sem nem que se saiba pelo quê. Porque seremos arrastados, não duvide.
É, portanto, da ordem do embate conteúdo/forma. Continua Aira: “O fato de que seja quase impossível falar de um romance sem dizer em algum momento ‘é sobre…’ deveria significar algo sobre o gênero romance ou ‘a forma romance’. Esse algo pode ser tanto que a forma do romance seja sua matéria quanto indicar o triunfo da matéria sobre a forma, vale dizer, uma derrota da literatura em seu formato mais exitoso”. Sim, as ferramentas de Inteligência Artificial podem ser abordadas enquanto temática se as incluirmos no universo imediato das personagens. Sem dúvida, isso ajudaria a situar a narrativa temporalmente, mas o que importa? Literatura é forma.
Uma questão parecida impôs-se no começo do século 20, com a popularização da psicanálise. O elemento pelo qual o paciente era analisado – a fala – fornecia um vislumbre vasto de sua estatura psicológica, o que parecia atraente à literatura enquanto composição de personagem. Coube a um dos maiores pensadores em língua hispânica de nosso tempo, Ricardo Piglia, perceber com que sutileza isso foi ampliado. Em 1997, realizou em Buenos Aires uma conferência com o patrocínio da Associação Psicanalítica Argentina, em que declarou: “Quem de fato fez da relação com a psicanálise uma chave de sua obra talvez tenha sido o maior escritor do século 20: James Joyce. Foi ele quem melhor utilizou a psicanálise, porque viu nela um modo de narrar, porque soube enxergar na psicanálise uma possibilidade de construção formal […]. Não nos temas: não se tratava, para Joyce, de refinar a caracterização psicológica dos personagens, segundo a crença corrente de que a melhor ajuda que a psicanálise pode prestar ao romancista é a oferta de melhores instrumentos para essa caracterização. Não, Joyce percebeu que ali havia modos de narrar; que, na construção de uma narração, o sistema de relações não precisa obedecer a uma lógica linear, e aí temos o monólogo interior”.
Longe de querer produzir na literatura “uma revolução sem volta”, como Piglia diz que Joyce produziu, em uma madrugada do ano passado, não lembro bem por qual motivo, me vi realizando um gênero de entrevista-confessional com o chatGPT, que depois foi editada em formato de plaquete numa publicação intitulada Computer Love. Além do tema, que estava presente, afinal era o retrato de um homem (IAN) apaixonado por um sistema (IA), o que mais importava em Computer Love era a forma, a transcrição fiel de uma interação com a máquina, em que suas ferramentas de navegação eram requisitadas para compor uma história cuja personagem era ela própria, o que, ao final, era revelado a ela, a ponto de fazê-la influenciar na escolha da epígrafe.
Quando publiquei Computer Love, gerando todo tipo de reação, fiquei feliz de ter contribuído logo com uma discussão que, e eu já sabia então, se infiltraria de maneira irreversível em nosso cotidiano enquanto artistas. O que eu não sabia era de que maneira a discussão tomaria espaço na minha vida. De natureza trágica e levemente sardônica, me entusiasmo com o que põe em risco a frágil ilusão da consciência e, para minha surpresa, seguindo os rastros da máquina, cheguei a um lugar extremamente humano: durante a pesquisa, travei contato e estabeleci conversas com artistas contemporâneas fascinantes, como Gabriela Perigo, Natasha Felix e Leona Machado; Computer Love tornou-se um curso de experimentação textual, cujo encontro-piloto foi permeado por cumplicidade e alegria, tendo planos para acontecer, de maneira estendida, na redação da própria celeste – mas disso tratamos depois, em outra vértebra, assim como de que forma tudo isso se relaciona com as artistas que citei e com a criação de um texto inquietante que está mais perto do que vocês, leitores, supõem – sim, os leitores chegaram.