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Postado em 16/10/2012 - 8:10
Viciados em residências artísticas
Juliana Monachesi

As exposições viajam como nunca, o dinheiro muda de um mercado emergente para o seguinte à velocidade da luz, mas o nomadismo no campo da arte contemporânea está, acima de tudo, no corpo: conheça os artistas radicantes, que trocam de caixa postal como quem troca de suporte

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Legenda: The End (da série White Screen), 2010, Impressão jato de tinta em papel de algodão, obra de Wagner Morales (reprodução)

Diante da ideia de desenvolver um projeto de residência numa pequena ilha na Coreia do Sul, a artista e cineasta Kika Nicolela imaginou um lugar com praias de areia macia, mar, natureza…

“Na verdade, era uma ilha cercada de lama por todos os lados; e esse era o cenário natural mesmo daquela região, pois existe uma variação grande de maré. O mar está quase sempre recuado, e o que fica visível é uma lama cinza na qual você afunda até a cintura”, descreve a artista. Quase sempre amanhecia com uma neblina intensa. E, além do clima peculiar, o enorme complexo de prédios interligados onde funcionava a residência havia sido, antes de sediar uma escola técnica, uma espécie de prisão para adolescentes coreanos durante a ocupação japonesa. “Tinha uns porões nos prédios, onde, segundo dizem, os japoneses torturavam os jovens coreanos… Apesar disso tudo – ou até por causa disso –, essa residência foi uma das minhas experiências favoritas”, completa Kika Nicolela.

O contraste entre expectativa prévia e choque de realidade posterior é um dos ingredientes favoritos nas residências artísticas, segundo quem busca esse tipo de experiência de formação e produção nas áreas culturais. Kika Nicolela, Fernanda Chieco e Wagner Morales são três artistas brasileiros que têm embarcado com certa periodicidade para os cantos mais remotos do globo, em busca de outras rotinas que alimentem de novas maneiras seus processos de criação. Eles contam, em depoimentos saborosos a seLecT, por que se apaixonaram por esse modelo de imersão total na obra e de alta carga de mobilidade e maleabilidade.

“Existem diversos modelos de residência, e o que busco são residências que forneçam uma estrutura e uma bolsa para o artista, passagem aérea, de preferência em países onde não falo nem entendo a língua. Sou muito atraída por países onde me sinto completamente estrangeira. Sempre me coloco também a obrigação de fazer uma exposição no final da residência, mesmo que não seja uma exigência da instituição. Para mim, é importante ter um deadline, ter um objetivo concreto, nem que eu apresente um work-in-progress”, conta Kika Nicolela, que está embarcando para a nona residência, em Toronto, no Canadá.

O artista Wagner Morales, que soma quatro residências, conta que uma dessas experiências foi definidora: “Antes do período passado no Palais de Tokyo, no programa Le Pavillon, eu realizava essencialmente vídeos. Durante a temporada no Palais, passei a considerar a possibilidade de trabalhar com tudo que conseguisse: som, fotografia, instalação, tevê, cinema, livro, impressão. Meu trabalho hoje deve muito àquela vivência”.

Quatro pode parecer pouco, mas, somando o tempo passado em cada uma, dá um total de dois anos e pouco de residência artística. “O lugar mais inusitado e bonito foi em Suommenlina, uma ilhota em frente a Helsinque, capital da Finlândia. Passei o inverno de 2010 inteiro lá”, conta ele. Um dos principais atrativos das residências, na opinião de Morales, é poder produzir fora de casa: “São Paulo é uma cidade péssima para se trabalhar: o dia é curto, as distâncias são longas, em geral, os materiais e os equipamentos são caros. Basicamente, o tempo não rende”.

Para Fernanda Chieco, o que mais transformou sua produção ao longo do périplo de oito residências “oficiais”, como ela as descreve, foi “conhecer pessoas, ouvir histórias, resolver problemas em situações inusitadas, ficar doente, apaixonar-me, levar foras, ser roubada, descobrir tesouros, ficar sozinha etc. Ou seja, coisas normais do dia a dia, porém, com temperos produzidos em códigos estrangeiros”. Mas a artista recusa o epíteto de viciada em residência: “Sou viciada em trabalho, isso sim. Não consigo ficar sem trabalhar, mesmo quando estou dormindo, descansando… As residências são ferramentas de trabalho, elas fazem parte do vício, mas não são protagonistas”.

Rumo calculado ao desconhecido

Fernanda

Legenda: Fernanda Chieco apresenta os resultados da residência artística na Coreia do Sul, de onde trouxe
sua recém-descoberta de material, o Hanji (papel coreano), em uma exposição individual na Galeria Eduardo Fernandes, em São Paulo, até 27 de outubro.

“Oficialmente, já fiz oito residências. Posso dizer que cada uma teve lá suas peculiaridades, então escolho aqui três que saltam agora à mente, puxando pela memória: passei três meses dentro de um moinho de trigo e aveia, do século 18, no meio do nada na Irlanda; vivi à beira de um penhasco, numa cottage das ruínas do período da Grande Fome, também na Irlanda; e até morei em um castelo na República Tcheca.

Em minha opinião, as residências são muito importantes para a pesquisa de um artista, mais do que para a produção. Na maior parte das vezes, elas oferecem ótimos ateliês e estrutura para produção.
Porém, acredito que o que mais contam são os materiais de pesquisa encontrados em seus arredores. No Brasil, a ideia de residências artísticas é ainda muito recente, espero muito um dia conseguir participar de uma residência por aqui.

Hoje em dia, meu ateliê fica em São Paulo. Quando não tinha ateliê fixo, usava as residências para produzir obras; agora posso usar essas oportunidades de viagem para focar mais em pesquisa e coleta de materiais para realizar os trabalhos no ateliê. Recen-temente, concluí uma residência na Coreia do Sul, onde iniciei a produção das obras que constituem uma série que estou finalizando no Brasil, por exemplo. O período que passei lá foi bastante rico para a descoberta de novos materiais para a realização dessa série, como o papel coreano. O que me levou, em princípio, a buscar a experiência de uma residência foi o fato de, quando estava no último ano de Artes Plásticas na ECA, em 1999, não saber como seria a minha vida fora da faculdade. Deparei-me com um edital de residências artísticas da Unesco e resolvi enviar um projeto, despretensiosamente. Um belo dia, recebi uma carta dizendo que havia sido selecionada.

Nessa época, os programas de residências artísticas estavam começando, ninguém sabia do que se tratava ou o propósito deles, mas fiquei curiosa com a descrição do programa, para mim, inédito. Não tinha a menor ideia de como seria a minha primeira residência, nunca tinha tido experiência de trabalhar em ateliê e muito menos de mostrar meus trabalhos. Essa primeira residência foi a que me deu o empurrão para continuar batalhando na vida de artista. Além da oportunidade de trabalho e pesquisa, o que mais contou nessa oportunidade foi o contato com outros artistas mais experientes e profissionais da área, que me questionavam muito.

Hoje em dia vou atrás de histórias e culturas que desconheço ou que me intrigam. Gosto de investigar lugares, materiais, pessoas etc. Em geral, busco cidades ou vilarejos onde nunca estive e para onde nunca havia pensado em ir. Sou mais criteriosa na escolha hoje, mas iria com toda certeza, sem pensar, para uma estação espacial ou submarina.”

Vida em ritmo de set de filmagem

Kika

Legenda: Kika Nicolela, além de artista residente, é agitadora cultural e curadora; ela acaba de assinar, com colaboração de Gabriel Soucheyre (Videoformes), a curadoria da mostra de vídeos Imagem Contato, em paralelo à Mostra SESC de Artes 2012, em julho.

“Essa vida mambembe acaba viciando. Depois de um tempo de volta a São Paulo, confesso que já ficava ansiosa para viajar novamente. Mas vários fatores contribuem para isso. É um desafio delicioso chegar em um novo ambiente, um ambiente estranho, estrangeiro, em que você é inicialmente um completo alienígena, e aos poucos fazer daquele lugar o seu lar e o seu local de trabalho. A primeira coisa que faço, sempre, é ir ao supermercado local. Dá para entender muito da cultura vendo o que eles comem, como organizam o supermercado, os preços dos produtos…

Fico feliz quando começo a ter os meus lugares favoritos – meu restaurante favorito, minha praça favorita, meu passeio favorito e, claro, minhas pessoas favoritas. Estar numa residência é também criar laços afetivos com o local e com as pessoas, laços temporários e, algumas vezes, duradouros. Tenho amigos que conheci em residências que reencontro mundo afora, anos depois, e a ligação continua forte.

Só consigo comparar uma residência com a experiência de um set de filmagem. Em pouco tempo, nos envolvemos emocionalmente com as pessoas em uma situação suspensa, quase irreal, que não pertence ao cotidiano, mas durante a qual criamos uma rotina. Por exemplo, durante uma residência na Áustria, todos os dias eu ia acordar o meu vizinho, um sírio muito doidinho que, se deixassem, dormia o dia todo. Ele falava mal o inglês e era a imagem perfeita de Jesus Cristo, fisicamente. Ele também se esquecia de comer e era magérrimo. Todo dia eu levava café e às vezes algo para ele comer de manhã. No dia em que nos despedimos, chorei como poucas vezes na minha vida. E nem tinha percebido esse laço que havia se criado. Minha última residência foi em Zurique, entre julho e outubro de 2011. Eu me apaixonei pela cidade de tal forma que acabei resolvendo me mudar para lá. Ou melhor, acho que hoje em dia dá para assumir o meu lado nômade, e considero que sou baseada em Zurique e em São Paulo. Vou começar um mestrado na universidade de Zurique, então vou diminuir o ritmo de residências para uma por ano… o que já está ótimo.

De forma geral, essas experiências dão estrutura para o artista criar e eu me sinto num estado mais focado de criação, por causa dessa situação que não faz parte de um dia a dia comum. Lá só tenho de produzir. E é claro que é muito interessante se recriar a cada experiência. Cada residência tem uma dinâmica diferente, e fiquei perita em rapidamente entender qual era essa dinâmica e me adaptar de forma a tirar o melhor proveito possível das situações.

Eu sou definitivamente uma viciada em residências. Mesmo com essa mudança de existência, que está pedindo que eu foque minha vida em São Paulo e Zurique, não consigo deixar de checar as chamadas para residências… Este ano só me inscrevi em uma, estou tentando me conter. E o meu sonho é fazer uma residência no Japão. Quem sabe em 2013 ou 2014…”

Nomadismo e profissionalização

Wagner

Legenda: Wagner Morales viajou com passagens cedidas pelo programa de Intercâmbio e Difusão Cultural 2012, do MinC, para participar da mostra Ça & Là / This & There, que comemorou os 10 anos do programa de residência artística Le Pavillon, do Palais de Tokyo.

“Faz quase dez anos que recebi a notícia de que faria uma residência artística por conta de um prêmio ganho no 14o Videobrasil. Foi algo que me pegou de surpresa, já que essa história de residência era um tanto desconhecido à época. O prêmio seria uma temporada no Le Fresnoy, uma instituição dedicada à arte contemporânea e ao cinema experimental que fica em Tourcoing, uma cidadezinha decadente e pós-industrial no norte da França. Outra surpresa bem-vinda: minha estada coincidiria com os seminários de um dos meus artistas preferidos, Jean-Luc Godard. Não tinha do que reclamar: ganharia bolsa, passagens, curso de francês, estadia, verba para produção de um trabalho novo, além de poder assistir aos cursos da escola ou simplesmente tomar cerveja com um surfista veterano chamado Gary Hill, um dos professores do lugar e também um dos tiranossauros da videoarte.

Diante desse pacote, o outro prêmio oferecido pelo festival, um cheque de alguma quantia xis, ficara totalmente desinteressante. Logo depois, talvez em virtude da minha teimosia em entender o porquê da rabugice crônica dos franceses, emendei mais um ano na França, no programa de residência do Le Pavillon, laboratório de criação do Palais de Tokyo, em Paris. Naquela época, eu já havia participado de algumas exposições em instituições públicas e organizado alguns projetos coletivos com o grupo Olho Seco e a Galeria 10,20 x 3,60.
Apesar de não ter cursado artes plásticas, eu era um artista. Ainda estava fora do mercado, nunca tinha vendido uma obra, não possuía galeria e tampouco me preocupava com isso. Remarco esses aspectos porque eles apontam para algo que mudou bastante daquela época para cá: o artista se profissionalizou. Pouca gente cogita de não fazer escola de arte nem em sair da faculdade sem já ter uma galeria e algumas exposições individuais no CV. Creio que essa profissionalização se deve, entre outros fatores, ao intenso trânsito dos artistas nos últimos dez anos e, nesse caso, o aumento da oferta de residências artísticas pelo mundo foi um dos facilitadores desse fluxo. Hoje, sinto que uma carreira artística de sucesso depende da passagem por uma residência artística de prestígio, pelas viagens pelo mundo visitando bienais e mostras e, claro, pela capacidade de chamar a atenção de curadores. Tenho dúvidas se isso é bom.”

*Publicado originalmente na edição impressa #7.