No vídeo Night And Day (2020), Ilê Sartuzi utiliza a técnica da fotogrametria – um processo de reconstrução tridimensional do espaço a partir de fotografias – para digitalizar um apartamento, no qual vemos uma cama, um colchão adaptado como sofá, um punhado de livros e materiais de trabalho artístico. A câmera flutuante transita no espaço do quarto, com a luz do dia, circula e sai por uma porta que retorna ao ponto de partida, de noite, alternando a penumbra com uma luz avermelhada. O áudio é um zumbido eletrônico, uma espécie de mantra que reitera a sensação de suspensão do tempo na imagem em movimento.
O deslizar da câmera de um cômodo iluminado para outro, idêntico ao primeiro, mostra um apartamento em uso, com as marcas e resíduos dos corpos que o habitam, mas desmaterializado. A vertigem que o vídeo provoca é resultado não só da circularidade do movimento da câmera, mas especialmente do tema. O confinamento no espaço doméstico e a passagem do tempo, com a sensação alucinante de dias e noites insones que se confundem, se relacionam com precisão com a matéria diáfana do vídeo, a luz e o pixel.
O granulado e o esgarçamento das imagens que compõem as sequências denunciam as falhas de leitura da fotogrametria no processo de renderização (a unificação pelos programas de edição dos diversos elementos do audiovisual, imagem, som, movimentos de câmera etc.). A incorporação desses elementos, que se afinam com o glitch, curiosamente sugerem uma visualidade típica das câmeras analógicas, na sua granulação – que remetem às fotografias de Mauro Restiffe, por exemplo – enunciando um embaralhamento de tempos.
O loop enfatiza o movimento da câmera, a circulação pelo apartamento, a passagem contínua entre noite e dia e a própria ideia de rotina no espaço doméstico. Em certa medida, o vídeo manifesta como o espaço físico conforma o espaço psíquico, fazendo pensar nas camadas sociais e econômicas implícitas nessa relação.
Dia e noite, de novo e de novo
Em outros trabalhos de Sartuzi, o corpo é tema e pretexto para a produção de esculturas de látex, moldes de gesso ou projeções. A ausência do corpo e a “câmera fantasma”, que registra o espaço doméstico neste vídeo, fazem pensar na presença do mundo virtual na subjetividade e a forma como permeia a experiência do mundo contemporâneo em geral, das relações interpessoais à economia. A vida é completamente transformada em imagem, em um mundo que passa a se comunicar e operar socialmente pela tela, o que não deixa de atualizar as contradições sociais da cidade.
Não à toa o título, Night And Day, faz referência à canção de 1943 de Cole Porter, que também foi usada na videoinstalação Ão (1980), de Tunga, na voz de Frank Sinatra. Mas não é só o título e a circularidade do tempo que aproximam os dois trabalhos. Na videoinstalação de Tunga, a trilha sonora e a imagem sugerem uma nostalgia da presença do sujeito na cidade, por meio de um corpo que vaga no túnel Dois Irmãos, no Rio de Janeiro. No recente vídeo de Sartuzi, temos o isolamento no espaço privado, sem a experiência do espaço público. Restrito em um apartamento, que é uma quitinete e, portanto, um espaço para um corpo só, Night and Day acentua a imprecisão de limites entre o espaço da sociabilidade e da intimidade.
Sabemos que em tempos de home office, os limites entre trabalho e vida pessoal, intimidade e aparição pública foram borrados, acentuando certas tendências contemporâneas que demandam a precarização das relações sociais. Nesse sentido, o vídeo de Sartuzi é uma resposta direta ao confinamento das classes médias urbanas (aquelas que podem trabalhar em casa), durante a pandemia do coronavírus. Contudo, reduzir a obra à condição de puro registro desse momento histórico implicaria perder de vista a polissemia e a dimensão auto reflexiva que Night And Day aponta.