icon-plus
Frame de Surveillance de Regina Silveira (Foto: Estúdio Regina Silveira)
Postado em 10/04/2020 - 9:08
Vídeo de artista: Surveillance, de Regina Silveira
Projeção de animação digital, criada em 2015, assume leitura insólita sob a ótica do isolamento social
Paula Alzugaray

Mosca-varejeira. S f. Bras. Designação comum às espécies de moscas que fazem postura na carne. Os ovos (varejas), postos juntos, são, em geral, esbranquiçados; as larvas têm o nome de bicho-vareja. (Aurélio, 1988)

Quando Regina Silveira promoveu um ataque de moscas-varejeiras na seLecT #46, a epidemia do coronavírus ainda não tinha se alastrado pelo planeta. Entre 28 de janeiro e 4 de fevereiro, quando convidada pela revista a pensar um trabalho que descrevesse a relação entre arte e política no contexto global contemporâneo, ela concebeu uma ocupação de moscas: como se as páginas configurassem a suculenta carne onde elas produziriam o seu ninho. 

A exibição do vídeo Surveillance (2015-2016) – que pode ser considerado uma origem do enxame de varejeiras hoje aninhadas na revista – inicia nova fase do projeto Vídeo de Artista: a publicação periódica no site da seLecT de trabalhos em linguagem audiovisual, acompanhados de um texto. 

A varejeira vigiada e aprisionada pelo foco de luz de Surveillance assume, em tempos de confinamento, uma feição dramática. Se em outros tempos as moscas de Regina Silveira circularam livremente pela cidade, projetadas em fachadas de edifícios – Transit (2001) – e compondo comentários políticos como fazem atualmente as projeções ativistas, agora elas surgem represadas nas telinhas de celulares e computadores pessoais. 

A varejeira confinada denuncia a forma magnífica com que o insondável se manifesta no mundo dominado pela Covid-19 e dá a real dimensão do monitoramento da nossa vida digital de cada dia.

A crítica da racionalidade opera há décadas nas intervenções de Regina Silveira. Entre suas diversas projeções indoors e outdoors, a mosca gigante de Surveillance espreitou a cama da colecionadora Eva Klabin e assombrou sua casa, em 2016. Intitulada Insolitus, a intervenção no contexto do Projeto Respiração promoveu “uma animalização da casa”, segundo o curador Marcio Doctors.

Insolitus perverteu a situação doméstica, forrando de pelos pretos a mesa de jantar (Mutante I) e o carrinho de chá (Mutante II) da casa-museu Eva Klabin, no Rio de Janeiro. Metamorfoseada em mosca, a mobília tornou-se uma ameaça repulsiva, hoje refletida na escalada do medo diante da pandemia do século. O clima de filme de terror se acentuava com a presença enigmática de Dark Swamp (Nest) (2013), um ovo negro do tamanho de uma pessoa, instalado no meio da Sala Renascença, e com a trilha sonora de Fábula II, composta de ruídos de insetos e helicópteros. 

Insólito é o momento que vivemos. Fábula é o ‘pântano escuro’, buraco negro que expele as forças da natureza que colocam em cheque as certezas. Para além das varejeiras, as obras de Regina Silveira ganham novos sentidos à luz do isolamento social. Em 2007, Mundus Admirabilis atualizava as pragas bíblicas, históricas e míticas, com insetos gigantes plotados em vinil adesivo sobre fachadas de edifícios, seguindo a série Rerum Naturae, composta por insetos daninhos aplicados a toalhas brancas de linho e peças de porcelana de uso cotidiano. “Sim, faz tempo que essas pragas começaram…”, diz Regina à seLecT. “Até o Tropel na fachada da Bienal em 1998 parece ligado a este imaginário de acontecimentos selvagens e violentos”, diz ela, referindo-se à intervenção realizada na fachada da Bienal da Antropofagia, com pegadas de animais plotados. 

O aspecto noturno da obra de Regina Silveira é apontado em crítica publicada na seLecT #46. A artista já havia escrito, há exatos 13 anos, em março de 2007, sobre Mundus Admirabilis: “Operando na hipótese de sua possível transposição para outros territórios da significação, as pragas revisitadas seriam metáforas não-lineares das pragas muito mais furiosas que hoje em dia nos assolam, a nível mundial e global, em diversas frentes: sociais, ambientais, culturais e ‘civilizadoras’, ameaçando um futuro que parece a cada dia mais inviável”. 

Antes da pandemia eclodir, Regina trabalhava para o projeto Caixa de Pandora uma intervenção que chamou de Inusitados. O trabalho leva para a casa que abriga a coleção Ivani e Jorge Yunes, em São Paulo, a técnica de forração em pelo dos objetos mutantes, agora chamados Insólitos. Um trabalho inédito está sendo concebido utilizando recursos de realidade aumentada. Visualizada por aplicativo, a ação pretende incendiar (virtualmente) uma liteira histórica que está no interior da casa e as quatro alegorias das artes, instaladas no jardim. 

Inusitado é o tempo contemporâneo. Quando o cotidiano é pervertido por pragas invisíveis espalhadas pelo ar, pela terra e pelos cantos recônditos, voltemos a Regina Silveira.

Serviço
Surveillance, 2015, Regina Silveira
Trilha: Rogerio Rochlitz
Animação: Regina Silveira e Rodrigo Barbosa de Souza, Zoom B