Apesar de sua fidelidade quase arqueológica à arte antiga, conforme repertoriada pela gramática pictórica do neoclassicismo, O Juramento dos Horácios (1784), de Jacques-Louis David, não é uma representação histórica. Seu assunto, o chamado às armas em um país em crise, não se passa em Roma, mas às portas da Revolução Francesa. É uma pintura sobre o futuro. O recurso ao passado, porém, não é sem consequências, pois sempre envolve um princípio regulador que subordina o presente a um sistema de formas prévias. Daí porque David não termina O Juramento do Jogo da Péla (1791): à medida que o processo político se acelera, os deputados vão deixando de corresponder ao conceito da revolução – e o quadro vai se tornando sua metáfora, uma obra inacabada. Várias reflexões vão estender esse caráter de suspensão ao ideário moderno como um todo, uma obra inacabada, às vezes significando que parte do trabalho a ser feito não é apenas sua continuidade, mas também sua revisão. Em todo caso, haveria uma latência de escapar do presente.
Ainda que essa antitética possa ser encontrada em outras distopias, como na dramatização de Estados autoritários ou de colapsos ambientais, o ciberpunk distingue-se delas porque não é apenas desprovido de esperança, mas também de medo. Entretanto, isso não resulta no simples desamparo – que, como a esperança e o medo, ainda é capaz de incorporação política –, mas na desagência, a condição do que não pode produzir efeitos. Embora o ciberpunk enfoque a vida precária e seu contraste com a alta tecnologia, a vulnerabilidade não tem força de implicação, não pode ser afirmada, porque a discrepância entre esses polos teria alcançado uma escala na qual não há um mundo a ser ganho por quem não tem mais nada a perder, o que significa que o próprio mundo foi despossuído do que faz dele um mundo: ser comensurável, sem o qual ele é só um planeta.
O CIBERPUNK É AGORA
Todavia, se a diegese ciberpunk tem um núcleo crítico ao tecnocapital, de mimesis opositiva à dominação que ela descreve, é ambíguo que ela suscite a nostalgia de um amanhã que nunca veio. A menos que se trate de uma nostalgia no sentido comum, de retorno à ordem, ao lar. O que talvez explique a exterioridade anacrônica de boa parte de suas estilizações retrofuturistas atuais, que conservam os referenciais oitentistas de sua origem. Nesse sentido, essa nostalgia não seria uma demanda por futuro, mas uma fuga ao passado, no qual o ciberpunk não havia se tornado uma ideia que vem se efetivando na realidade. Assim, nossa época não seria de cancelamento do futuro, mas do presente, pelo processo de aceleração do tecnocapital. Com isso, a retomada da obra do ideário moderno é cada vez mais inviabilizada, porque o juízo retroativo que busca as potencialidades do que não se realizou no passado, do que não encontrou seu tempo, depende, para sua reconfiguração e reinscrição no presente, que exista um presente. Sem isso, a rememoração só pode converter-se em nostalgia. O problema, então, não é que a razão leva tempo, mas que ela requer um regime de temporalidade que a aceleração aniquila: a coruja de Minerva não tem onde pousar, pois, como se diz, “o ciberpunk é agora”.

Isso parece levar ao entendimento de que o ciberpunk possui um grau de predição que outros subgêneros da ficção científica e mesmo outras atividades textuais e não textuais não têm. Essa leitura, porém, ainda é cativa da noção de que haveria um princípio de uniformidade no qual o futuro é determinado pelo presente, que é compartilhado tanto pela estatística quanto pela crença. Nisso, não há diferença entre predição e superstição. Não apenas o trabalho diagnóstico, mas também o trabalho prognóstico é obsolescido pela aceleração ao impossibilitar a apreensibilidade do presente. Logo, toda teoria possível só pode ser ficção. Como consequência, toda abordagem da ideologia como inversão, câmara escura que põe de cabeça para baixo o que é realidade e o que é ficção, como se elas fossem extrínsecas uma à outra, perde seu objeto – mesmo em concepções gradativas, que mantêm a bivalência entre o verdadeiro e o falso em polos opositivos. A ideologia não pode mais ser concebida a partir do realismo representativo da noção de falsa consciência, de uma crença que nos impediria de acreditar em outras coisas, de acreditar em mais. E mesmo que essa noção conceda que a ideologia não é espontânea, mas de segunda ordem, essa derivação ainda é pensada como crença, crença da crença, e a ficcionalidade como um consenso. Por isso, mas não só por isso, não há um falso realismo do tecnocapital. Do que não se segue que ele é verdadeiro, mas que a realidade não se coloca nesses termos.

É o que a teoria-ficção propõe fazer. Sua história remete ao gênero da ficção especulativa, encontrada em obras de fantasia, horror e ficção científica, ligadas, em grande medida, ao advento de revistas pulp na virada do século 20 e seu entretenimento rápido, marcado pela violência, estereótipos e resoluções fáceis, mas que, à sua maneira, eram uma elaboração do medo e da esperança da classe trabalhadora quanto ao futuro. Diferente do jornalismo literário, das reportagens ensaísticas ou das ficções de tese, nas quais teoria e ficção são intercambiáveis, a teoria-ficção dissolve essas categorias. No entanto, uma proposta mais virulenta de ficção especulativa sugere que não há distinção entre realidade e ficção – a exemplo da afirmação de que Neuromancer (1984), marco literário do ciberpunk, não previu, mas inventou o futuro, bem como o fato de que pesquisas no campo da interação entre seres humanos e computadores se valem crescentemente da ficção científica –, como indicariam os experimentos no campo da cultura capazes de propagar suas ficções a ponto de se tornarem reais, as chamadas hiperstições (hyperstitions).
CICLO AMPLIFICADOR
De um ponto de vista operacional, são profecias autorrealizáveis ativadas em um sistema cibernético de retroalimentação positiva. Ao passo que a retroalimentação negativa promove a homeostase, a partir da resposta compensatória a um desequilíbrio (a que produz um b que produz menos a), a ciberpositiva é um ciclo amplificador (a que produz um a que produz mais a) – daí o prefixo hype, que denota intensificação. Contudo, que realidade e ficção não são contrárias não significa que elas se nivelem à maneira interpretativista de que tudo seria representação, crença.
A hiperstição não é um antirrealismo, cética sobre o próprio estatuto da existência. É mais radical: a existência é ela mesma um campo de batalha. Também não é um decalque, uma ideia sobreposta na realidade. A própria realidade é hipersticional, uma guerra por qual ficção é mais ciberpositiva, mais engendradora daquilo que a realidade é. Que isso exceda a simples doação de sentido, individual ou coletiva – embora não deixe de instanciar essas dimensões –, aponta que uma hiperstição não é um desiderato, não se submete a um querer, porque não há uma engenharia de métodos e ferramentas que revele os mecanismos causais de seus efeitos. A revelação vem primeiro: uma hiperstição, se funciona, é como uma invocação, o chamado por algo que não temos controle. O tecnocapital – dinheiro que produz mais dinheiro, tecnologia que produz mais tecnologia, em um circuito de retroalimentação simbiótica – é ele mesmo uma hiperstição e a mais sensível à hipersticionalidade, porque nele a suposta demarcação entre realidade e ficção vem se dissolvendo conforme a aceleração avança a generalização do ciberespaço, no qual registros encenados da vida, fake news, ascensão de IAs generativas etc. são intensificados por uma dinâmica competitiva que amplifica o além da verdade.
Tudo somado, se o ciberpunk hipersticiona o agora e nossa condição é de desagência, há o que fazer? A resposta é sim, mas sem saber o que estamos fazendo. Não se pode negociar com o tempo. É um balcão sem garantias, mas no qual há moedas que compram mais do que outras, embora não se saiba o quê. Nele, o passado vale pouco e o presente está fora de circulação. Isso, David não entendeu. No auge do Iluminismo, ele pinta Lavoisier, o que não salva o cientista da guilhotina. De modo inverso, mas simétrico, Marat assassinado retorna à vida. “O povo reclama de volta seu amigo”, disse David. “Eu obedeci.” E, no fim, ele será o pintor oficial daquele que enterrou a revolução. É possível dizer que David nunca se arriscou ao futuro puro, ao Desconhecido, àquilo que vem do Fora. Pois hipersticionar é abrir um portal: não sabemos o que pode entrar, mas sabemos que um portal sempre tem dois lados – que ele também é uma saída.