icon-plus
Anna Bella Geiger (Foto: Diana Tamane)
Postado em 14/05/2018 - 4:27
Você já sofreu assédio?
Anna Bella Geiger, Marcos Felinto, Anitta Boa Vida, Santarosa Barreto, Rodolpho Parigi, Jup do Bairro e Sheila Leirner respondem à pergunta feita pela #seLecT38

Inúmeros relatos de assédio sexual vieram à tona no último ano. Será que no meio artístico, ambiente que se considera avançado, a situação é diferente? Pelo longo e detalhado ensaio publicado em novembro pela artista, acadêmica e escritora cubano-americana Coco Fusco no site Hyperallergic, intitulado “Como o mundo artístico e as escolas de arte estão propícios para abusos sexuais”, não é mesmo. A partir da definição de assédio da Organização Internacional do Trabalho, seLecT fez a pergunta a artistas visuais e outros profissionais do circuito.

Anna Bella Geiger
Artista visual
Sim. Apesar do desprazer que sinto ao me lembrar dessa convivência no ambiente de trabalho, no MAM-RJ, nos anos 1970-1980, acho da maior importância que uma revista de arte levante esse assunto do assédio sexual junto a artistas mulheres principalmente.

Praticamente, todos os itens mencionados pela Organização Internacional do Trabalho me afetaram de algum modo, por anos a fio, sendo utilizados por alguns críticos de arte da época e algum galerista. Não sei como outras artistas contornaram esse constrangimento, mas acompanhando as suas carreiras pude tirar minhas próprias conclusões. E houve inclusive tragédias.

Isso me levou a frequentar pouco a cena artística e a ser pouco citada no jornal, mesmo atuando bastante enquanto artista plástica. Por me negar sistematicamente a me submeter a esse constrangimento, e sem ter a quem recorrer, o medo foi se instaurando. E ainda havia a ditadura.

Marcos Felinto dos Santos (Foto: Fernanda Cesar)

 

Marcos Felinto dos Santos
Educador, produtor, massagista
Já sofri muitos assédios no meio artístico, sempre de homens em situação de trabalho. Alguns foram grosseiros, como ser  tocado, cutucado, alisado, ter os cabelos puxados ou mesmo ouvir uma chamada mal direcionada: “Venha aqui menino, vou cortar esse seu cabelo!”, com teor erótico impresso nos olhos. Outros contatos foram sutis, como olhares persecutórios e dissimulados durante vernissages ou reuniões.  Em outros casos, os assédios vieram como ameaças despropositadas, retaliação decorrente de recusas, e expressavam algum tipo de vontade de poder desses artistas.

Têm em comum todas as situações e o fato de eu nunca ter aberto qualquer premissa para que tais interesses surgissem. Para lidar com as situações e garantir minha posição, por vezes apaguei da memória, tanto que hoje forço para recobrar certos episódios. Também minimizei a gravidade da sujeição, sem notar que a maior implicação negativa disso tudo recaía ainda sobre mim.

Se for uma moda – como acenam artistas conservadores privilegiados pela graça da mediocridade – apontar, pautar e questionar assédios sexuais, racismo, sexismo e toda a sorte de opressões em meio à blindada classe artística, acolho a tardia tendência como um movimento coerente da parte de ativistas, da mídia e da sociedade civil, que nutrem cada vez mais interesses em abordar o custo humano alocado na base de produções artísticas. Produções que, por si, já não são mais capazes de sustentar a integridade de pensadores, produtores  e artistas que, sistematicamente, respaldados em suas posições de poder e prestígio, oprimem a quem se vê posto descompensadamente na balança da correlação de forças.

É no mínimo estranho, mas factível, que a opressão seja presente e denunciada em setores artísticos progressistas e tradicionalmente alinhados com ideais igualitários. O debate sobre padrões comportamentais nocivos e a exposição pública de abusadores crônicos são, por hora, as melhores ferramentas para estimular e efetivar posturas e políticas compensatórias em favor de pessoas ou grupos que gozam, estruturalmente, de menos recursos protetivos institucionalizados.

Políticas criadas no campo de tangência entre gênero, classe e raça nos oferecem novos níveis de corresponsabilidade, troca, empregabilidade e proteção! O artista e sua produção, o mercado galerista e as instituições museais se veem implicados a contribuírem, ao menos no plano ético, com os debates levantados pelos movimentos civis minoritários, o que causa um choque real em um filão de artistas, curadores e marchands habituados aos privilégios e poderes abusivos que já tiveram em outras épocas.

Ainda assim é comum ouvir relatos de jovens estudantes de curadoria, designers, fotógrafos e educadores apontando exploração abusiva do trabalho e abusos de tratamento de seus chefes em galerias de arte e agências de publicidade. Se pararmos para ouvir faxineiras e copeiras, a situação piora mais ainda.

Hoje, entende-se que a obra de um artista agrega também as constelações de relações em torno das quais ele gravita. Como nunca antes, temos acesso aos bastidores de estúdios, ateliês, produtoras e instituições culturais revelados por aqueles da base, que dão suporte diário para que as produções surjam e celebridades brilhem, comodamente albergadas por bons trabalhos artísticos que possuem, em igual proporção, o apuro técnico, o rigor estético de profissionais especializados e, em certos casos, a falta de ética de seus diretores e produtores.

Com as muitas ferramentas epistemológicas emprestadas de feministas, negras sobretudo, mais os dispositivos de comunicação dos quais dispomos, temos uma potente rede de comunicação em prol dos que deixam de calar vivências traumáticas, em nome de reformas urgentes no que tange ao debate público sobre as masculinidades. Tal exposição não é capaz de fragilizar ainda mais os grupos ativistas do que já se encontram internamente fragilizados por suas contradições internas. Esse é o lugar para o qual apontam as recentes denúncias surgidas nas mídias.

Anitta Boa Vida (Foto: Acervo Pessoal)

Anitta Boa Vida
Artista visual
O depoimento que tenho para dar não vai necessariamente ao encontro das definições da Organização Internacional do Trabalho ou se deu apenas em ambiente artístico ou acadêmico. O que tenho para falar é sobre minha experiência e vivência neste corpo de mulher e como este corpo é entendido pelo mundo. Sobre quantas vezes fui tocada sem autorização ou ouvi barbaridades sobre meu corpo/roupa/gestos durante uma aula, uma festa, ou aguardando o ônibus chegar. Não existe vida tranquila. É uma constante vigilância de gestos e olhares apenas para existir sem ser assediada.

Self-Portrait as a Fountain (2011), de Santarosa Barreto (Foto: Cortesia da Artista)

 

Santarosa Barreto
Artista visual
“Os seus seios é que são uma obra de arte”, ouvi de um homem sobre a minha versão de Self-Portrait as a Fountain. No autorretrato estou nua e cuspindo água, como Bruce Nauman fez nos anos 1960.

“É seu corpo ali? É um autorretrato? Você depila tudo?”, também ouvi, em tom de piada, quando me apropriei e alterei digitalmente a imagem da pintura L’Origine du Monde, de Gustave Courbet, para produzir uma instalação intitulada Rasée.

“Quero conhecer seu ateliê, posso?”, me disse outro homem, na abertura de outra exposição, enquanto ele apertava minha cintura e lançava sua saliva sobre o meu pescoço.

“Não conheço os seus trabalhos. Me mostra? Aposto que são tão lindos quanto você”, ouvi outra vez ao ser apresentada a um sujeito na abertura de uma exposição. Vivi essas quatro situações e eu poderia citar inúmeras outras. A lista seria grande e, certamente, atualizada a cada exposição, ateliê aberto, evento, abertura, reunião, aula, encontro. Num ambiente ainda predominantemente tomado por homens é o que vive uma mulher artista. Muitas vezes o interesse pelo trabalho é, na verdade, o interesse pelo corpo da artista, seja o corpo dela matéria para suas obras ou não. E digo isso sendo uma mulher branca e cisgênero. Para mulheres negras e mulheres trans, pessoas historicamente ainda mais excluídas do meio das artes visuais, o cenário é bem pior.

“Mas era só um elogio! Mas era só um convite inocente! Eu só queria dar uma oportunidade a ela!”, eles se defendem. “Como ela é exagerada! Ela é louca! Ela está mentindo! Não confiem nela, não trabalhem com ela! Não convidem ela! O trabalho dela é ruim, ela é uma farsa!”, continuam.

Rodolpho Parigi (Foto: Acervo Pessoal)

Rodolpho Parigi
Artista visual
Eu já sofri cantadas e algumas propostas, mas teve uma ocasião que achei vulgar demais. A pessoa ficou me perseguindo com mensagens e propostas. Meio que eu ficava fugindo. Como não preciso ficar quieto por medo ou por qualquer outro motivo, dei risada e fiz uma cara de paisagem. A pessoa continuou enchendo meu saco e eu continuei sempre rindo e não reagindo. Aí ele se tocou, eu acho. Se a pessoa souber fazer e for interessante, não teria sido um constrangimento para mim na ocasião, mas fiquei no início meio sem saber como lidar. Mas uma cantada boa de alguém bacana não é um problema para mim, e nunca será. Acho que faz parte das relações humanas. Mas abuso de poder, sim, pega bem mal e é muito constrangedor para quem passa por isso. A pessoa tem de ser denunciada, principalmente homens héteros que abusam de mulheres. Tem gente sacana em toda esquina, mas tem muita alma boa também. apresentadas por artistas.

Jup do Bairro (Foto: Cortesia da Artista)

 

Jup do Bairro
Performer, rapper, dj
Infelizmente, eu acho difícil uma pessoa marcada pelo signo feminino, independentemente de que corpo habita, não ter presenciado algum tipo de assédio e/ou ofensa no meio artístico. O poder ainda é majoritariamente másculo e machista de forma tóxica. Precisamos sempre lembrar que os nossos avanços não são favores.

Sheila Leirner (Foto: Marie Anne Worms)

Sheila Leirner
Crítica e curadora
Jamais fui assediada em ambiente de estudo ou profissional, apesar de ter sido convidada a posar como modelo fotográfico, participar de filmes e ter iniciado a minha carreira como jornalista e crítica aos 25 anos. Desde cedo senti-me extremamente respeitada e, às vezes, até mesmo temida. Por outro lado, sofri tentativas de assédio em minha vida pessoal, sem nenhuma das características estabelecidas pela OIT, de forma não menos abjeta. A minha explicação é de que – afetada por uma difícil situação familiar – talvez eu não tivesse, do ponto de vista emocional, a mesma solidez e autoridade que desenvolvi no cumprimento de meus deveres de ofício. É possível, portanto, que certos indivíduos “predadores”, por uma espécie de atavismo de dominação, só ataquem suas “presas” quando pressentem uma possível fragilidade. O que me leva a concluir que a solução para o assédio sexual não é a denúncia ou a punição. É a educação e o preparo de mulheres e homens, desde a mais tenra idade.