Se a origem do termo América Latina remonta aos territórios colonizados por povos hablantes de línguas latinas, atualmente a concepção ganhou caráter de aliança e resistência. Vale apontar que, no intervalo de quatro anos entre as edições de 2010 e 2014 da pesquisa “O Brasil, As Américas e o Mundo”, do Instituto de Relações Internacionais, da USP e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o porcentual de entrevistados brasileiros que se sentem latino-americanos passou de 2,8% para 6,7%. Artistas com pesquisas decoloniais posicionam-se em relação à questão.
Adriana Varejão
Sem dúvida, me identifico e me reconheço como latino-americana, embora o que seja exatamente essa “identidade” latino-americana é uma pergunta que eu me faço. Não sei precisar ainda se imaginamos uma América, se forjamos sua identidade e construímos uma história a posteriori, costurando relações, ou se vamos nos construindo a partir dessa confluência, enquanto nos enxergamos como parte de um todo. Gosto de pensar em uma América Latina indígena, ligada à terra, à cultura ancestral. Ao mesmo tempo, nessa América Latina que traz como grande riqueza ser uma mistura de tantas coisas simultaneamente, esse território-microcosmo onde convivem tantos povos e tantas culturas. Me identifico com essa terra, com a nossa ancestralidade e também com esse multiculturalismo pulsante. E reconheço em meu trabalho alguns temas latino-americanos por excelência, como o barroco mestiço e mais ainda o neobarroco como uma expressão de contraconquista. Também a teatralidade e a violência que atravessam profundamente a minha obra e o meu entendimento de uma América Latina comum, onde a natureza, a exuberância, os excessos, os extremos e o viés político e revolucionário estão intrinsecamente conectados.
Fernando Lindote
Para além da denúncia do povo charrua na cor da minha pele, mais que os resquícios de holandeses, espanhóis e portugueses, o que se coloca como origem não é tanto a circunstância histórica dos meus antepassados – implicada e determinante –, mas a minha condição excêntrica que reivindica limites às possibilidades de atuação e inserção no mundo. A condição de latino-americano é, antes, um estado de sobredeterminações recíprocas entre dominador e dominado. Optar por apenas uma das etnias que se cruzam em mim seria confortável. No entanto, essa opção me parece prematura e superficial. Para mim, não há possibilidade de seguir adiante sem aderir visceralmente aos conflitos que me tornam – nos tornam? – um campo permanente de batalha. Pois, quem sabe, dos espólios desse combate – de cada um e de muitos – possa surgir uma nova ficção social.
Raylander Martins
Eu sou uma artista nascida no cafundó do mundo, e é assim que me inscrevo, em uma terra tão arredada do centro, que apenas as escrevivências inventadas neste fim de mundo podem situar minha existência e prática. Minha boca vem do meu cafundó, que vem do cafundó da minha boca. Eu sou um cacto espinhoso que toca o sol, e num futuro próximo irei atravessá-lo. Entendo que os povos do cafundó do mundo precisam elaborar continuamente práticas de aquilombamento e de coralidade, que permitam estar em segurança e sonhando, nesse sentido é importante se identificar e se reconhecer. Compreendo também que, se existe uma unidade entre nós, a unidade que o outro nomeou como América Latina, ela se funda justamente nas inúmeras cosmovisões e epistemologias dos povos que nasceram nesse cafundó. O conjunto América Latina, enquanto conceito de identidade estanque, responsivo à hegemonia, nada pode contribuir para estilhaçar a colonialidade, porque ainda está regido pelo que o outro define e categoriza. Já a América Latina, como a reivindicação de um grande levante, onde os processos específicos de cada uma de nós são levados em conta, celebrando assim nossas estranhezas, nessa sim, eu me inscrevo.
Vulkanica Pokaropa
Quando escuto falar sobre a América Latina, de imediato, penso em colonização e em invasão. Me pergunto qual nome teria, se tivéssemos tido a oportunidade de sermos nomeadas pelas populações indígenas, que habitavam e habitam esses espaços. Por muito tempo me nomeei “Brasileira”, e apenas isto – por alienação e falta de acesso à informação, já que nos fazem acreditar que o Brasil não tem relação com os 19 países que compõem a chamada “América Latina”. Entendo que isso se dá por uma estrutura social capitalista, que não nos quer unidos. Que não quer o diálogo entre os moradores dessas nações. E que não permite nos organizarmos para a derrubada desse lugar de hierarquia e de exploração dos países que se dizem de “Primeiro Mundo” sob nossas economias e matérias-primas, nos mantendo continuamente como “terceiro-mundistas”. Questiono a forma como o nome “América Latina” nos foi imposto. Questiono o nome “Brasil”, que também nos foi imposto sob sangue indígena e preto. Mas penso também que temos muitas ligações e histórias que se entrecruzam. É de extrema importância nos vermos como aliados para que risquemos estratégias de sobrevivência, visto que essa elite branca, cisgênero e burguesa que está no poder quer continuar nos mantendo como mão de obra escrava para o Ocidente. Portanto, identifico-me como latino-americana, mas questiono como isso foi dado.
Mano Penalva
Pensar se me sinto latino-americano é um exercício que exige atenção. Cair numa ideia geográfica, de um passado histórico, ou mesmo cultural, não dá conta desse ponto, que é grande. Essa não é uma pergunta que me faço com frequência, mas a primeira coisa que me vem à cabeça é o lugar de onde vim: Salvador, Bahia. Depois vou compondo uma imagem com os lugares onde passei e onde vivo hoje: São Paulo. Como artista, gosto de pensar esse tema como uma questão a ser seguida e latente, mesmo que não me sinta preso a ela. Ser latino-americano é algo que perpassa muitos momentos da minha pesquisa e em idas para alguns países da América Latina passei por situações ora ampliadas, ora reduzidas. Por vezes ser brasileiro me serviu mais. Nesse caminho me identifico muito com o pensamento de Néstor García Canclini, que diz que a América Latina é, mais do que uma identidade, (pode ser) uma tarefa. O exercício que nos propõe, refletir o que é ser latino-americano já é um passo importante para a construção desse imaginário coletivo ampliado.