Estou sentada diante do laptop, com duas janelas abertas. Pesquiso matérias recentes no site da celeste sobre seminários que abordam os rios como tema, recursos linguísticos ou metafóricos para falar de arte, cultura, sociedade, futuro. Ao lado, uma página em branco. Escrevo uma primeira frase. Um rio não existe sozinho. Este é o título do projeto do Instituto Tomie Ohtake, com curadoria de Sabrina Fontenelle e Vânia Leal, que este ano se desdobra em dois ciclos de conversas e, em 2025, duas exposições, em São Paulo e Belém. Diante da tela, deixo os pensamentos correrem, esperando pescar na correnteza um argumento para começar o editorial da celeste #3, quando sou interceptada por uma mulher. Ela pede licença, fala em inglês. Desculpa-se, dizendo ser uma pessoa que vem das águas, como eu. Oi? Levanto o olhar da tela, busco por seus olhos. Inquietos. Ela se senta na minha frente, continua falando. Preciso que você me ajude a sair daqui, não sei onde estou, onde é a saída, onde eu posso pegar um Uber pra sair daqui, diz. De onde você vem?, pergunto. Ela não se lembra. Onde você mora? Em Lake . Não compreendo o nome do lago de onde ela vem. É pra lá que você quer ir? Sim. A solução é perguntar se ela tem um cartão de embarque. Sim. Um ou dois minutos de busca na bolsa de viagem e ela me mostra dois cartões: GRU-YYZ (Guarulhos-Toronto)/ YYZ-MSY (Toronto-New Orleans). Você está na América do Sul e precisa ir pra América do Norte, então deve ir de avião, não de carro. Horário de embarque de GRU: 20h15. Relógio no canto direito superior da tela do computador: 20h30. Corra, digo, arrastando-a ao caminho dos passageiros em direção a todos os portões de embarque. Ela agradece e desaparece no fluxo. Mas sou eu quem devo agradecê-la, por ter me tirado do eixo e desorientado minhas ideias de escrita para o manifesto editorial desta celeste #3.
Penso nos rios voadores. Mas, na primeira das quatro edições que dedicaremos às águas fluviais, impossível não começar pelo trauma das enchentes dos rios do Rio Grande do Sul, que desabrigaram centenas de milhares de pessoas, antes que o Brasil começasse a queimar. Desorientação. Perder o chão, não saber o caminho pra casa. Não ter casa. O que é a saúde mental para aqueles que foram desterrados? Quais tipos de conflitos emergem quando se é uma pessoa entre dois lugares? Relembro as perguntas lançadas no editorial do jornal berlinense Arts of the Working Class nº 30, em maio último, edição dedicada a migrantes em busca de sobrevivência, quando os cinco mais importantes rios do RS – Jacuí, Tapari, Caí, Sinos e Gravataí – já haviam alcançado o Guaíba e inundado Porto Alegre. É de instabilidade que se trata quando falamos das águas. Na reportagem A Grande Vaga, Juliana Monachesi investiga como três artistas gaúchos, André Severo, Flavya Mutran e Leo Caobelli, refletem sobre a convivência entre rios e cidades na era do Antropoceno.
Mas é também de confluência que se trata quando pensamos em rios. Um rio não existe sozinho. Da confluência do que pode ser chamado de “memórias gráficas” de artistas e técnicos impressores, diluídas na grande malha hidrográfica do Rio Paraguaçu (BA), sobre as quais Ian Uviedo se alonga mansamente na reportagem Fluxo Sem Leito: Uma Viagem Tipográfica ao Recôncavo Baiano. É ainda de reconfiguração que falamos. De territórios redesenhados, de flutuação de linguagem, que faz muitos dos textos desta edição afluírem em direção às ficções. Inverter palavras, reinventar retrancas. Como faz Yuri Sugai ao ficcionalizar as histórias soterradas do hoje subterrâneo Córrego da Traição, afluente do Pinheiros (SP). E de imaginação. Como fazem os artistas Marepe, Davi Rodrigues e davi jesus do nascimento no projeto Gráfica Fluvial, coordenado por Nina Lins, preservando em imagens o Paraguaçu e o São Francisco.