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O Milagre de Helvetia (2022-24), de Guerreiro do Divino Amor, no Pavilhão da Suíça na Bienal de Veneza 2024 [Foto: Matteo de Mayda / cortesia La Biennale di Venezia]
Postado em 20/06/2024 - 7:27
Ativismo político-superficcional
Guerreiro do Divino Amor faz ruir a ideia de representação nacional na Bienal de Veneza

E se entendêssemos o mundo como permanente embate entre entes orgânicos e inorgânicos, tecnologias e formas de ficção? Ou como imenso campo de batalha entre forças produtivas, materiais e virtuais?

Há quase duas décadas, Guerreiro do Divino Amor vem divisando seu Atlas Superficcional Mundial à sombra de eventos culturais, políticos e científicos que ora projetam-se horizontalmente ao rés do chão, ora verticalmente em direção ao espaço celestial ou mesmo ao submundo terrestre. A exemplo das categorias marxistas de infra e superestrutura, os universos superficcionais criados pelo artista vão igualmente operar sob rígidas arquiteturas de poder, fluxos econômicos e tramas ideológicas responsáveis por forjar o conjunto das relações sociais, quer no plano material, quer no simbólico.

Para Guerreiro do Divino Amor, fenômenos políticos e atmosféricos são eventos análogos, cujos impactos se fazem sentir, ampla e insidiosamente, sobre todo o planeta Terra. Na toada alegórica a embalar suas cosmogonias, noções de artifício e natureza se tornam redundantes, convertendo a esfera cultural em arena soberana onde as mais diversas formas de vida prosperam ou decaem através dos tempos históricos. Interessado nos movimentos coloniais do passado e do presente, o artista engendra seus mundos superficcionais a partir de colagens, vídeos e esculturas – dimensões narrativas que se sobrepõem à dita realidade, assim induzindo a trajetória humana.

Roma Talismano (2024), de Guerreiro do Divino Amor, no Pavilhão da Suíça na Bienal de Veneza 2024 [Foto: Matteo de Mayda / cortesia La Biennale di Venezia]
Filho de mãe brasileira e pai suíço, Guerreiro do Divino Amor passou a vida a transitar entre Europa e América, absorvendo culturas diametralmente opostas e construindo uma prática artística que se inicia na faculdade de arquitetura La Cambre, na Bélgica, mas acaba por ganhar corpo e sedimentação no Brasil. Em paralelo à investigação do espaço geográfico em sua dimensão construída, o artista se vai debruçar com ironia e engenho sobre as cartografias “naturais”, simbólicas e políticas que conformam ambos os continentes – colonizador e colonizado –, seja no âmbito da ciência e das tecnologias ou mesmo dos meios de comunicação de massa e das doutrinas religiosas (daí seu nome artístico Guerreiro do Divino Amor, tomado de empréstimo das práticas evangélicas atualmente em expansão mundo afora).

IMPLOSÃO DE UM MODELO
Eis que este artista-esfinge, suíço-brasileiro, foi convidado a representar a Suíça na 60ª Bienal de Artes de Veneza este ano. Sob curadoria de Andrea Bellini, o pavilhão helvético, situado logo à entrada dos Giardini, é um dentre muitos igualmente destinados às representações nacionais. Vale dizer, poucos são os países a gozar do “luxo” que é ter uma edificação permanente, especialmente construída para exibir sua arte nacional, localizada justo no panteão do primeiro e maior evento de tal natureza no mundo – ali estão sediados pavilhões de apenas 30 nações; o Brasil é uma delas. Os demais países apresentam seus artistas fora do epicentro, geralmente em palazzos temporariamente alugados noutras partes da cidade.

 

Roma Talismano (2024) [Foto: Matteo de Mayda / cortesia La Biennale di Venezia]

Todavia, em face às guerras da Rússia na Ucrânia e de Israel na Palestina – sinais extremos de novas investidas coloniais em pleno século 21– o fato de a mais prestigiada Bienal de artes do mundo permanecer operando segundo os moldes nacionalistas das Exposições Universais do século 19 é, no mínimo, desconcertante; para não falar no assombro e perplexidade morais que esse modelo possa gerar. Afinal, a origem de tal natureza de eventos encontra-se amparada num momento histórico cujo concerto de forças hegemônicas buscava dar visibilidade a suas inovações tecnológicas, descobertas científicas e produções artísticas – as quais hoje sabemos terem sido instrumentos de dominação política e cultural, bem como de extrativismo econômico e de riquezas naturais. Em suma, boa parte das mazelas atualmente sofridas na esfera do meio-ambiente, das lutas emancipatórias dos povos colonizados, ou mesmo do recrudescimento das ideologias fascistas, nos remetem a uma era na qual os movimentos de expansão neocolonial se enraizavam socialmente amparados em ostensivos espetáculos de supremacia nacional.

Não obstante, a seleção de Guerreiro do Divino Amor para ocupar o pavilhão da Suíça dá sinais trocados em meio ao controverso tabuleiro político contemporâneo. Se, por um lado, sua escolha se alinha a de outros países, cujos pavilhões este ano decidiram apresentar artistas egressos de suas ex-colônias (o caso de Espanha), ou pertencentes aos povos originários colonizados (caso dos EUA), ou mesmo cidadãos nacionais de outras origens culturais (o caso dos Países Nórdicos) –numa tentativa clara de expurgar suas culpas históricas ou de endossar o politicamente correto –, por outro, o caso específico do artista selecionado e de sua obra suscita uma série de questões políticas que acabam por implodir a própria ideia de representação nacional desde o interior da Bienal de Veneza. A começar, pelo fato de a mega instalação apresentada por Guerreiro confrontar os ditos traços multiculturais formadores daquele país poliglota (ou da Europa, no limite); para além disso, contudo, o artista vai situar o pavilhão Suíço no escopo expandido da formação cultural do Ocidente, dragando para seu caldeirão iconoclasta até mesmo a Itália, país sede do evento – ou o império dos impérios, segundo a perspectiva eurocêntrica, qual seja: o romano.

O Milagre de Helvetia (2022-24) [Foto: Matteo de Mayda / cortesia La Biennale di Venezia]

PANORAMA CELESTIAL DA HEGEMONIA TENTACULAR DO CAPITAL
Muito embora a megalomaníaca construção de um Atlas Superficcional Mundial tenha se iniciado em Bruxelas, em 2005, tal projeto somente ganharia seu atual espectro estético-político no Rio de Janeiro: uma cidade marcada pela “acumulação desigual de tempos” (Milton Santos), cujas capas de agentes geológicos, humanos e tecnológicos, combinadas às forças políticas, sociais e econômicas, constituem terreno fértil à construção de cenários indelevelmente marcados por projetos extrativistas.

Entre metrópoles e colônias, as superficcões tramadas pelo artista seguiriam ganhando tessitura a partir de suas errâncias pelo território brasileiro: assim se deu em São Paulo, Minas Gerais e Brasília, e posteriormente ao artista se deslocar, uma vez mais, em direção à Europa. Em meio à pandemia do Covid-19, ele daria consequência a uma nova instância de seu ultra ambicioso projeto artístico: O Milagre de Helvetia (2022), produzido em sua terra natal durante o confinamento.

Para a presente Bienal de Veneza, Guerreiro do Divino Amor associa tal projeto ao seu mais novo capítulo da saga superficcional: Roma Talismano (2024). Ambos tratam de destrinchar as engrenagens ocidentais, seja em suas formas míticas ou mesmo profanas. Em O Milagre de Helvetia, o Capital – instância maior da mundanidade na era moderna – constitui-se numa espécie de Leviatã, tentacular na orquestração dos fluxos financeiros, de mercadorias e mesmo humanos, controlados desde o pequeno país europeu que atravessou as duas grandes guerras alardeando suposta neutralidade política enquanto escamoteava dinheiro mal havido. Ao longo do século 20, entretanto, o país consagrou-se como manancial de jovens milionários que, egressos de seus abastados internatos, tornariam-se poderosos CEO’s de corporações mundo afora — verdadeiro celeiro reprodutor do DNA neoliberal. Como não bastasse, Suíça é base de uma das maiores e mais controversas indústrias de laticínios do mundo, a Nestlé, e sede europeia da ONU, organização responsável pela manutenção da hegemonia do Ocidente sobre o planeta.

O Milagre de Helvetia (2022-24) [Foto: Matteo de Mayda / cortesia La Biennale di Venezia]
Em meio a essas e tantas outras trincheiras políticas, econômicas, culturais e históricas, Guerreiro do Divino Amor escrutina a Suíça não a partir de mitologias pré-existentes – como o Leviatã hobbesiano supracitado – mas, sim, de um panteão de quinze entidades inventadas pelo artista, responsáveis pela salvaguarda dos valores helvéticos supremacistas em distintas arenas do mapa geopolítico. Figuras superpoderosas, capazes de controlar e mover a economia do mundo, tais personagens femininas respondem ao poder absoluto de Helvetia: Deusa das deusas, bicéfala, cuja face cega ignora os fatos espúrios, enquanto a outra, clarividente, observa atentamente os virulentos desígnios de suas súcubas. As narrativas hiperbólicas de Guerreiro do Divino Amor constroem um panorama de forças políticas que se apresentam como visão celestial do inferno na Terra, observado pelo público desde uma espécie de planetário, cuja abóbada serve de suporte para que tais instâncias de poder se digladiem ou articulem em meio à paisagem supostamente idílica dos alpes suíços.

Já no lado oposto do pavilhão, encontra-se Roma Talismano (2024), uma feérica instalação multimídia na qual torrentes de imagens e hologramas vertem dos mais variados suportes tecnológicos como grande alegoria do Império Romano, tão decadente e ainda assim tão presente no imaginário contemporâneo. Uma vez mais, dentre muitas e novas entidades míticas, destaca-se a loba romana, reencarnada pela artista brasileira Ventura Profana: uma mulher de muitas tetas, cujo leite serve de insumo à reprodução das grandes narrativas eurocêntricas.

A partir de seu espetáculo visualmente sedutor-aterrador, e desde uma perspectiva brasileira, Guerreiro do Divino Amor escancara a perversidade ocidental desde os alicerces desta própria cultura, sejam aqueles da antiguidade, sejam os contemporâneos. Não se trata, aqui, pois, apenas de desconstruir narrativas históricas, nem de atualizá-las, mas de subvertê-las desde o eixo do poderio cultural irradiado pela Bienal de Veneza e seus pavilhões nacionais de arte contemporânea. Sobretudo, trata-se de usar o próprio bastião do soft-power ocidental como plataforma aniquiladora das narrativas totalizantes que nos vêm sendo contadas de há muito e dão sustentação ao conjunto de forças coloniais ainda operantes no globo. Ao pôr em xeque a supremacia-branca-europeia desde uma mirada brasileira, utilizando-se de um verniz farsesco, e aproveitando-se da infraestrutura Suíça para tal fim, Guerreiro faz provavelmente o melhor ativismo artístico-político desta Bienal.

Bernardo José de Souza faz exposições, escreve e pesquisa arte contemporânea. Atualmente trabalha como curador independente desde Madrid.