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Fotos da instalação O Silêncio das Bombas (2005), de Marcos Zacariades, em Igatu [Foto: cortesia do artista]
Postado em 03/07/2024 - 8:20
Chapada Diamantina das artes
Exposição O Tempo Espelhado, de Marcos Zacariades, aborda questões sociais em um território marcado pelo extrativismo

Igatu é uma cidade localizada na Chapada Diamantina, que chegou a ter dez mil habitantes no século 19. Além disso, fez parte do extenso território do maior produtor de diamantes do mundo. Lembrando que a produção diamantina na África do Sul é mais tardia. As famílias que possuíam grandes plantéis de escravos no recôncavo baiano tinham uma enorme influência política e econômica na região, o que reforçava ainda mais sua posição de classe dominante. Logo, segregação e discriminação racial eram práticas comuns.

Todo o ciclo diamantino durou até o final da Segunda Guerra Mundial (1945). Logo, com cem anos de processo extrativista, as minas se exauriram completamente. A partir do pós-guerra, a maior parte da população migrou para o sul do país, haja vista que ali começava o processo de industrialização. As cidades foram gradativamente ficando vazias – passando a ser, de fato, esquecidas no tempo. Entretanto, existia e existe ali, um conteúdo histórico, inenarrável.

É impactante deparar-se, no caminho entre Mucugê e Igatu, com um cemitério neogótico e bizantino ao mesmo tempo. Ele foi construído durante o período áureo da exploração de diamantes na região, no século 19. As sepulturas têm características arquitetônicas marcantes, com pequenos mausoléus brancos, torres e cúpulas. É um testemunho silencioso de um passado rico e complexo.

[Foto: Camila Martins]
Chegando em Igatu – a 22 km da cidade de Mucugê –, você navega em um chão de paralelepípedo que ecoa histórias e faz pensar o que já passou naquelas pedras. Entre muitas coisas, você vê a calmaria das mulheres mais velhas sentadas na calçada em frente a suas casas bordando, que fazem refletir sobre o cotidiano feminino. E, por causa da riqueza do solo que transborda metaforicamente diamantes, Igatu dá um suspiro no ouvido de quem gosta de ecoturismo e vinho. A vegetação predominante é campo rupestre, considerada um dos ecossistemas mais ricos do mundo.

Mulher sentada na calçada em frente a sua casa, bordando [Foto: Camila Martins]
Uma região de riqueza natural que esbanja cachoeiras e lagos em contato com a pedra bruta de grutas e grunas (muitas delas construídas pelos homens, servindo como locais de extrativismo mineral ao longo da história). Quem acredita em energia, ali existe algo que não dá para explicar e nem ser entendido completamente, uma sensação única que conecta as pessoas à natureza de maneira profunda e inexplicável.

Marcos Zacariades, artista baiano nascido em Salvador e formado pela Escola de Belas Artes da UFBA – Universidade Federal da Bahia, conheceu a Chapada Diamantina no ano de 1984, período em que a região amargava o momento mais agudo da decadência do ciclo diamantino – deixando um vazio de casas em ruínas e uma população desassistida. Uma década depois, na pequena vila, o artista inaugurou o projeto Galeria Arte & Memória. Feita de pedras e tombada como patrimônio histórico, ela só foi aberta no ano de 2002, após a formação do artista como visual.

Zacariades foi se envolvendo com a comunidade local e tomou iniciativas importantes, como a de levar energia elétrica para a cidade. Sua relação com a arte já era estabelecida, tendo participado da 16ª Bienal de São Paulo em 1981, motivado por seu trabalho com e interesse em arte postal. Hoje, em sua galeria há duas salas dedicadas à arte contemporânea, uma que mostra sua obra, outra para mostras temporárias. Para o curador Paulo Herkenhoff, que está organizando um livro sobre o artista, “o trabalho do Marcos tem uma grande abrangência, um diapasão de muita largueza. É o que eu acho que é uma obra épica”.

Fachada da UVVA [Foto: cortesia da UVVA/ Marcos Zacariades]

UM MUSEU DE LEMBRANÇAS EM UM GARIMPO REABERTO

O artista reabriu uma gruna com artistas colaboradores em um local que celebra a memória dos garimpeiros, criando 44 esculturas deitadas em forma de homens espalhadas pelo local, chamado de Penitentes da Memória Coletiva, concluído em 2007. Este projeto visava não apenas iluminar os espaços escuros das grunas fechadas, mas também revitalizar a herança cultural da região, trazendo um renascimento para o desenvolvimento local.

“Procurei trazer uma história de um lugar que teve um passado brilhante e passou por um período de decadência, trazendo o renascimento de uma herança cultural para um novo processo de desenvolvimento”, afirma Marcos Zacariades. Todos, ali retratados, já haviam morrido. Só restavam, naquele momento, oito deles que realizaram alguns encontros para relembrarem os colegas. Este trabalho, sem sombra de dúvidas, é o mais impactante, sério e rico de memórias, que hoje poucos conhecem, que já vi.

A Família Borré tem sido um marco significativo para o desenvolvimento econômico e cultural da região de Mucugê, Bahia. Iniciada em 2018 e inaugurada em 2022, a vinícola UVVA representa um avanço no setor vinícola brasileiro, especialmente no sertão baiano. Com 52 hectares dedicados ao cultivo de uvas e uma arquitetura que incorpora móveis de designers brasileiros renomados como Sergio Rodrigues, a UVVA não apenas produz vinhos de alta qualidade, mas também crava a identidade nacional investindo em café e arte, com uma galeria dentro da Vinícola e uma exposição permanente do artista Marcos Zacariades chamada O Tempo Espelhado, que aborda questões sociais em um território marcado pelo extrativismo.

Da esquerda para a direita: Paulo Herkenhoff, Fabiano Borré (CEO da UVVA) e o artista Marcos Zacariades em frente à obra O Silêncio das Bombas (2005), na exposição O Tempo Espelhado [Foto: cortesia do artista]

O TEMPO ESPELHADO

Chronos Antropoêmico (2022) é uma instalação feita de madeira, com uma peça maciça que parece despejar no chão vários fragmentos de madeira de outras tonalidades, para transmitir uma mensagem impactante sobre a devastação ambiental e suas consequências. Por outro lado, a obra intitulada por Shen (2007) aborda questões sociais complexas, relacionadas à pena de morte, usando ninhos como metáfora para a vida, fazendo o espectador refletir sobre suas ações e impactos. Ambas as obras provocam uma reflexão crítica sobre temas importantes, como o meio ambiente e a justiça social. Esse tipo de arte contemporânea muitas vezes busca não apenas atrair a atenção estética, mas também gerar um diálogo profundo e provocativo sobre as questões que enfrentamos como sociedade.

Criança segura ninho da obra Shen (2007) em Taipei, Taiwan [Foto: cortesia do artista]

CANTOS DAS ALMAS

Em meio às ricas tradições da religiosidade brasileira, Marcos Zacariades buscou reavivar o canto na procissão das almas na cidade, um ato que havia caído no esquecimento. Esta procissão ilumina o culto às Santas Almas, uma herança transmitida de geração em geração, onde fé e devoção se transformam em guias e protetores espirituais. Ocorre durante o período da quaresma, entre a Quarta-Feira de Cinzas e a Sexta-Feira da Paixão. Trata-se de um grupo de pessoas que saem de suas casas cobertas por lençóis brancos, como proteção, para cantar pelos mortos. A maioria dos participantes são mulheres que percorrem trilhas e becos de Igatu.

“Com a decadência do povoado de Igatu, o ritual, assim como outras manifestações religiosas e culturais, havia desaparecido. No ano de 2003, reuni algumas mulheres no intuito de resgatar o ritual que já havia, até então, 23 anos que não ocorria. A reunião foi um exercício de memória para que elas voltassem a lembrar dos benditos e da ritualística do ato, conta Marcos Zacariades.

Neste ritual, ele desenvolveu uma obra de Movimento Etérico (2022), formado por três painéis fotográficos que retratam 870 imagens de lençóis jogados ao céu, exibido sobre backlight. É como se faíscas de luz em lençóis brancos em contraste com o céu azulado estivessem se movendo para que o cosmo receba estes lençóis que configuram as almas, enfatizando a ideia de transcendência e espiritualidade.

Exposição Tempo Espelhado do artista plástico Marcos Zacaríades na vinícola Uvva em Mucugê, Chapada Diamantina [Foto: Rafael Martins]
Zacariades, como artista, encarna uma abordagem tanto contestadora quanto criativa, equilibrando-a com uma postura sóbria e racional. Sua habilidade de ressignificar a cidade em diversos aspectos sublinha o papel crucial da arte. Ele exemplifica como a arte pode ter um impacto profundo sobre a população, revelando-se crucial.

Detalhe de Movimento Etérico (2022), de Marcos Zacariades [Foto: cortesia do artista]
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