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Registro da peça Eu sou um Monstro [Foto: Bruno Lemos/ cortesia Teatro Vivo]
Postado em 27/06/2024 - 7:06
Sobre pactos da imaginação
Na peça Eu Sou um Monstro, o artista e figurinista Fause Haten cria um Francis Bacon ficcional que se mistura com sua própria persona

O chão e o teto do teatro são iluminados por fitas de led arroxeadas, formando quadrados que se espelham. De um lado do espaço, pessoas entram no anfiteatro para assistir a outra peça. Sobram poucos de nós. Somos informados que o ponto de encontro da peça será no lado oposto do espaço, sinalizado por uma plaquinha. Ao lado da plaquinha, uma sala fechada, toda branca, sem nenhuma sinalização. Passo na cafeteria do teatro, aos fundos; ao retornarmos, sentamos em uma poltrona. Meu companheiro sinaliza para o ponto de encontro: o ator está lá, mexendo no celular e conversando com outros espectadores.

Em algum momento ele se levanta, e chama todos nós para começarmos. Em tom simultaneamente informal e teatral, ele anuncia que irá nos levar para um tour. Que, apesar das nossas expectativas, aquilo é uma performance, exposição, visita guiada, instalação. Após esse preâmbulo, ele nos guia pelo espaço, apontando coisas ausentes. Ao passar pelo café, descreve um balcão de bar, com uma parede de bebidas e bartenders sem camisa (os atendentes do café parecem indiferentes a ele e a nós). Ao passar por uma parede, fala sobre um quadro. Não tem nada ali.

Finalmente, ele nos leva até a sala fechada, abre a porta, nos convida a entrar. Lá dentro, uma exposição, com retratos e, no centro, uma instalação de cadeiras pretas amontoadas. Uma exposição do ator, mas também do artista que ele interpreta. Lá, ele assume: nós esperávamos uma peça teatral, mas encontramos uma exposição de pintura. Os retratos são fotos. Mas, na peça, são pinturas. E, se desculpando por não existir peça, o ator/pintor anuncia que irá nos contar uma história, e pede: para que isso dê certo, acreditemos que ele é, de fato, o pintor Francis Bacon.

A MENTIRA E A FICÇÃO
O espetáculo Eu Sou um Monstro, no Teatro Vivo, entra em sua segunda temporada em tempos da exposição A Beleza da Carne, em cartaz no Masp. O espetáculo se inspira em uma história pessoal do pintor, e, a partir dela, ficcionaliza em forma de monólogo, passando-se na atualidade. 

A história real é a da morte de George Dyer às vésperas da primeira grande retrospectiva do pintor, em 1971, em Paris. Grande amor da vida de Bacon, Dyer tem uma overdose de comprimidos para dormir misturados com álcool dois dias antes da exposição, sendo encontrado morto no banheiro do hotel onde o casal se hospeda. Bacon segue com as preparações para a abertura. O tríptico Estudo para Três Cabeças (1962), na exposição do Masp, está acompanhado de uma ficha contando a mesma história. São três retratos de George Dyer, em que sua figura aparece como que transmutada em fumaça e retorcida dentro de si mesma, prestes a se dissipar. O tríptico fazia parte da retrospectiva de 1971.

O monólogo de Eu Sou um Monstro se inspira parcialmente nesse acontecimento, mas o Bacon contemporâneo, escrito e interpretado pelo figurinista e artista Fause Haten, introduz uma dramaticidade fílmica na narração. A morte, nesse caso, é na manhã da abertura, e a partir dela o personagem constrói reviravoltas quase hollywoodianas – está menos na ordem do drama e mais na do suspense. O próprio monólogo assume isso, interpelando divagações do artista com a contação de história como se fosse um filme, com cortes, pausas, interferências de transmissão. O monólogo simultaneamente narra a reprodução do filme e interpreta seus personagens internos, criando um personagem, o fílmico, dentro de outro, o narrador.

Esse encalacrado narrativo é característico da peça em si. O texto é esperto, e internaliza até mesmo aquilo que não seria peça. Nós que estávamos assistindo somos internalizados – a ponto de o monólogo exigir que um de nós se sente à frente do ator enquanto ouvinte de uma confissão. Internaliza nossas expectativas, o espaço físico do teatro e as limitações (ou minimalismo) da cenografia, internaliza o ator no personagem e o personagem como personagem de si. A peça é, como toda peça de teatro, um pacto de imaginação dos espectadores com os atores. Porém, Haten exige um passo a mais, que é acreditar que a peça existe, como peça. Que ela não é só uma proposta conceitual, mas se realiza formalmente no texto e na interpretação. Em certo momento, o Bacon de Haten afirma que a mentira e a ficção não são iguais, e a diferença é que a ficção pode ser verdade, e a mentira jamais será – e, de certa forma, a afirmação implícita é que estamos diante de uma das duas.

Registro da peça Eu sou um Monstro [Foto: Bruno Lemos/ cortesia Teatro Vivo]

NÓS, OS MONSTROS

Três dias depois de ver a peça, fui ao MASP visitar A Beleza da Carne. Não cabe aqui uma crítica à exposição, mas sim um comentário pessoal. Nas laterais de cada sessão da mostra, encontram-se frases do artista. Um delas diz: 

A pintura já é muito física, pintar cenas de homens em ação me dá um grande prazer.
É um dos aspectos do comportamento humano que mais me interessam.
É instinto, e é meu instinto pintar isso.
Francis Bacon, 1992

Esse texto elucida uma passagem da peça que, na realidade, não é exatamente sobre Francis Bacon (nem o real, nem o ficcional). Ou melhor, não é só sobre ele, mas também sobre Haten. A passagem narra a descoberta do interesse pelas artes, desde a infância, começando da costura para o figurino, e dele para o teatro. O conteúdo é uma introdução biográfica ao fazer artístico, mas a forma vai se tornando cada vez mais maníaca. O teatro se torna ápice: nele, o personagem descobre que pode mandar os outros se moverem, dizerem, falarem, sentirem. Após cada descoberta dos seus interesses artísticos, a frase título da peça escapa: “Eu sou um monstro”.

O tom é algo confessional, afinal, no início da peça, Haten nos guia pelo espaço, nos conduz pelos nossos sentimentos, nos dirige como se fôssemos atores, cenografia e público simultaneamente. Mas aos artistas presentes, imagino que esse trecho suscitou identificação. Sei que ela ocorreu em mim, ao menos. Isso porque nele está presente um impulso destrutivo, de produzir arte experimentando romper moral e eticamente com o social. Experimentando, por vezes, com o outro, uma curiosidade sádica. A arte é espaço de liberdade, e liberdade nessa passagem é necessariamente monstruosa. Não porque esse é o destino necessário de toda a arte, mas porque por vezes esse impulso toma forma como se fosse da própria obra, e ela quisesse ir até o limite usando do artista como seu veículo – uma forma de instinto. A passagem acaba comentando sobre a peça no sentido em que ela é um impulso de jogar conosco que toma forma. Ainda que longe de fugir do convencionalmente aceitável – a peça jamais chega perto da agressividade ou de alienar seus espectadores –, a curiosidade sobre nós está lá, como uma ironia.

Registro da exposição Beleza da Carne, em cartaz no Masp [Foto da autora]

A FICÇÃO E NÓS
Daria para dizer que o texto da peça não é esperto – ele é espertinho, pois gerencia nossas expectativas, transforma as nossas reações mesmas em texto e, dessa forma, gera um misto de surpresa e ironia. Analogamente a como, no começo da peça, o ator desfaz a instalação central da exposição de fotos-pinturas e a transforma nas cadeiras em que o público senta, organizando-as uma por uma, com a maior informalidade do mundo. Nessa parte da peça, me permiti rir, não apenas pela mistura inusitada dos nossos corpos com a peça, mas também com a descerimonialidade em que a instalação – que não sabemos se é uma instalação ou a representação de uma instalação – é toda desfeita para sentarmos em cima.

Mas seria injusto dizer que o texto da peça é apenas um jogo conceitual. Ao começar a contar a sua história, Haten entra em um universo imaginário que trabalha formalmente não apenas as questões que cercam o monólogo (como a disfuncionalidade do amor romântico e da produção artística), mas também a sua principal referência. Os primeiros minutos narram um turbilhão sensório, quase ininteligível, de acontecimentos em uma longa noitada. A euforia, o desejo, a desinibição, a mania: tudo transparece no ritmo e nas escolhas das imagens difusas, que suscitam uma sensação de loucura e de desintegração do personagem no ambiente. Nesse sentido, diria que, apesar de não ser acessória para compreender a obra de Francis Bacon, a peça toma a inspiração mais a sério que mera curiosidade biográfica sobre o pintor, e a obra de Bacon (o real) acaba elucidando as imagens da peça.

A entrega de Haten a seu texto, inclusive, é o ponto alto, o canalizador de tudo que acontece. A peça não pede perfeição na enunciação do texto, mas exige habilidade, devido a recorrentes saltos de um registro narrativo ao outro, que são feitos com perfeição. Ótimos momentos ocorrem quando Haten consegue suspender quase que completamente o véu da atuação e parecer, com a familiaridade dos trejeitos e dos tons, uma pessoa real contando uma fofoca espetacular. E disso o texto novamente se revira para um filme narrado, e dele para uma confissão, e assim por diante. Por conta da boa atuação, é possível acompanhar concentradamente cada um desses momentos. No fim, é esse cuidado com o fazer teatral que nos leva a fechar o pacto com Haten. Talvez por isso a peça tenha terminado com um gesto de cumplicidade: um abraço do ator com o espectador que sentou à sua frente durante todo o monólogo. 

A segunda temporada da peça Eu Sou um Monstro, de Fause Haten, fica em cartaz até domingo, 30/6, no Teatro Vivo, em São Paulo.

EM CERTO MOMENTO, O BACON DE HATEN AFIRMA QUE A MENTIRA E A FICÇÃO NÃO SÃO IGUAIS, E A DIFERENÇA É QUE A FICÇÃO PODE SER VERDADE, E A MENTIRA JAMAIS SERÁ – E, DE CERTA FORMA, A AFIRMAÇÃO IMPLÍCITA É QUE ESTAMOS DIANTE DE UMA DAS DUAS